Arquivo

O voto em branco

A questão do voto em branco, que surgiu nas primeiras «eleições livres» realizadas no pós-25 de Abril – quando alguns elementos do MFA e seus apoiantes o aconselharam, sem qualquer sucesso – e parecia em definitivo enterrada, ressurgiu, subitamente, com o último livro de José Saramago, o Elogio da Lucidez.

Não está em causa, diga-se, a superior qualidade literária do livro que, como seria de esperar, se confirma inteiramente.

Trata-se, aliás, de uma fábula, ou seja: de uma narrativa inventada, com um propósito moralista e político, repleta de episódios inesperados, que se encadeiam com enorme imaginação, formando a teia complexa do romance. Mas também – como o próprio autor reconhece – de uma provocação política, dado que a sociedade descrita (que pode ser ou não a portuguesa) afigura-se de tal maneira bloqueada que leva os cidadãos que a habitam, por uma estranha coincidência (ou talvez não, não é claro), a utilizar, maioritariamente, como forma de protesto, o voto em branco.

Contudo, o autor fica-se por esse enunciado: omite pronunciar-se sobre o que virá a seguir, limitando-se a deixar a pergunta no ar.

Note-se que o voto em branco é uma das formas de votar admitidas na Lei Constitucional, sendo por isso perfeitamente legítimo. Mas tornando-se um voto de protesto maciço – como o livro de Saramago sugere e que se imagina mal como possa acontecer – poderá tornar-se uma forma de insurreição moral contra o sistema ou seja: contra a democracia?

É uma pergunta que fica no espírito dos leitores. Por mim, respondo sem hesitação: não creio. Por duas razões, essencialmente: porque a democracia não depende só do voto, implica um Estado de Direito, sujeito ao império da Lei, com pesos e contrapesos, com tribunais independentes a que se recorre para dirimir os conflitos, implicando a existência do que Karl Popper chama «sociedade aberta», onde os cidadãos têm direitos, podem manifestar-se e interactuam livremente; depois porque a democracia dispõe em si mesma de mecanismos para resolver o aparente impasse criado por um hipotético voto em branco esmagadoramente maioritário: os Governos demitem-se quando deixam de ter maioria nos Parlamentos; os Parlamentos dissolvem-se se forem desautorizados; os Presidentes renunciam se consideram não ter condições para cumprir as competências que lhes são atribuídas; os partidos esgotam-se quando deixam de ter capacidade de atracção sobre os eleitores… Numa tal hipótese, tão extrema, ficaria a sociedade civil, que dificilmente se compreende que possa suicidar-se. E, então, das duas uma: ou se auto-reorganizaria democraticamente; ou acabaria por forjar o partido único do voto em branco, regressando às ilusões que as ditaduras de início alimentam naqueles que serão as suas futuras vítimas…

Trata-se, obviamente, de uma fábula, de indiscutível engenho literário, repito, com um imenso conteúdo polémico, que lhe realça o valor, mas que desemboca numa pergunta deixada propositadamente sem resposta, detrás da qual se adivinha um impasse.

E, no entanto, as motivações que a ela conduzem têm razão de ser. A democracia está efectivamente em crise, por múltiplas razões. Entre elas, porque os Estados nacionais estão a ser corroídos nos seus poderes tradicionais pela globalização económica e suas consequências; o poder económico-financeiro se sobrepõe hoje, manifestamente, nas sociedades mais desenvolvidas, ao poder político – o que é muito grave; o poder mediático depende do financeiro e está a curto-circuitar a democracia representativa; etc.; etc.

Contudo, se a democracia está a atravessar uma crise, estou convencido que a vai, uma vez mais, superar. Também nos anos trinta, com a ascensão do nazi-fascismo e do comunismo, se dizia – após a crise económica de 1929 – que a democracia só funcionava em sociedades decadentes e que, por isso, iria, necessariamente, soçobrar. Ora, não aconteceu assim. A democracia, que parecia tão frágil, venceu os totalitarismos. Quem se atreveria então a profetizá-lo? Hoje, continua a ter problemas e contradições graves a resolver, é incontestável. Mas vai também superá-las.

É certo que, frequentemente, a opção do voto parece não entusiasmar os eleitores por não corresponder a escolhas efectivas. É esse o caso quando as práticas dos partidos – da direita e da esquerda – se aproximam, não se distinguindo suficientemente. Quando o espectro do «centrão» ameaça retirar conteúdo à «alternância» partidária…

No entanto, nem nessa hipótese extrema, o voto em branco se justifica nem, menos ainda, a abstenção. Porquê? Porque a doutrina comunista do «boné branco versus branco boné», ou seja: os partidos que se reclamam da esquerda e os que se situam à direita são iguais na sua prática, favoreceu sempre a direita e, frequentemente, a extrema direita. Passou-se isso – um exemplo entre tantos – com o nazismo no tempo da República de Weimar.

Mesmo que a democracia nos pareça demasiado «formal» – como diziam antigamente os comunistas – é sempre mil vezes melhor do que a ditadura ou o partido único. Daí que o voto em branco só possa conduzir a um impasse bem pior do que a situação que se pretende contestar, através desse mesmo voto.

O livro de Saramago é uma obra literária de incontestável mérito. Deu-me prazer lê-lo e obrigou-me – o que talvez seja uma das suas principais virtudes – a reflectir. Mas a sua «provocação», em forma de fábula, reconduziu-me à conclusão de que o remédio para a crise da democracia não é o voto em branco mas mais democracia e maior participação cidadã.

Rede Expresso

Por: Mário Soares

Comentários dos nossos leitores
L.Rego elrego@sapo.pt
Comentário:
O Dr Mário Soares fala em defesa do PS, e de todos os seus amigos socialistas, cuja preponderância seria dramáticamente diminuída
 
Luís Correia Cardoso lccardoso@gmail.com
Comentário:
Obviamente que o Voto-Branco não irá criar uma alternativa democrática ao poder instituido, mas não será mais eficiente do que a abstenção ignorada sistematicamente pelos partidos? Se eu vou à urna e não escolho nenhuma das opções apresentadas, não será porque não me identifico com nenhuma delas? Se o Presidente eleito no próximo domingo vencer com o voto de 25% dos eleitores, qual vai ser a leitura da nossa democracia? Serão os eleitores que terão de se identificar com os candidatos ou serão estes que devem representar os seus eleitores?
 

Sobre o autor

Leave a Reply