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Ó Tordo, leva a lama como lembrança!

Não é muito importante saber se Fernando Tordo emigrou nas melhores ou nas piores condições. Não é sequer muito importante saber se emigrou por causa da crise ou porque os tempos e os gostos mudaram. Tordo sentiu-se obrigado a sair do seu país aos 65 anos e isso amargurou-o. Não consigo imaginar sentimento mais natural. O seu filho, o escritor João Tordo, divulgou no seu blogue pessoal uma carta sentimental e indignada ao seu pai. O que também se compreende. Sendo que o autor é ele e não o pai.

Fernando Tordo interpretou a canção que, na prática, anunciava o princípio do fim de um regime (“A Tourada”, com a sua demolidora crítica, em todas as entrelinhas, ao marcelismo). É natural que a sua partida para o Brasil, num momento em que Portugal e a sua democracia se põem em causa, provoque sentimentos fortes. Talvez também seja natural que outros, a quem a carreira musical estará a correr, por mérito próprio, melhor, gostem que se saiba da sua bem sucedida internacionalização (refiro-me ao texto publicado por Fernando Ribeiro, dos Moonspell ) . Embora o autoelogio às cavalitas da tristeza alheia, por mais merecido que seja, nunca me deixe boa impressão de quem o faz. Ainda assim, são fraquezas humanas. Também elas naturais.

Para anular a carga simbólica desta partida nada como abrir a caça ao Tordo. Os seus contratos e o que recebeu foram esgravatados e publicados, em generosas doses de populismo e porções homeopáticas de rigor. Porque, com raras exceções, o jornalismo já pouco mais faz do que receber notícias de fontes interessadas, quem levanta a cabeça vê a sua vida minuciosamente revistada. Foi assim com Januário Torgal Ferreira. É assim com Fernando Tordo. Será assim com o próximo. Esta crise libertou um ar tóxico e irrespirável.

O passo seguinte foi o aproveitamento do tal texto de Fernando Ribeiro. De um lado, uma geração de chupistas burgueses, da esquerda confortável, contratada pelas câmaras municipais, pendurada no Estado e que agora chora por terem acabado os favores. Do outro, uma geração de suburbanos lutadores que se fez à vida, se internacionalizou e conquistou a pulso tudo o que vende. No fundo, esta crise separa o trigo do joio. Os “empreendedores” da cultura que têm unhas é que devem tocar guitarra. É o “ajustamento” explicado através da música. E, mais uma vez, o debate político é reduzido, com a insuspeita ajuda de um heavy metal supostamente comunista mas demasiado contente consigo mesmo para compreender o papel a que se presta, a um mau filme de Hollywood. Com caricaturas em vez de pessoas e ideias sempre fáceis para não baralhar as almas simples.

Apesar disso ter logo passado também a ser debate, não quero saber se os Moonspell alguma vez foram contratados por autarquias ou se tiveram algum apoio do Estado. Assim como não queria saber nada de especialmente novo sobre Fernando Tordo. Dispensava esta lama toda. Interessava-me o simbolismo desta partida, porque é a despedida duma geração. Uma geração que acertou e falhou. Mas, já agora, a geração a quem devo a minha liberdade. Aquela que, não tendo feito “tours non stop” nos EUA para internacionalizar o seu produto, teve a coragem de afrontar a ditadura com a sua voz. Talvez não seja possível medir isto em vendas. Mas mede-se bem neste simples facto: o País deu pela partida de Fernando Tordo. Daria pela partida dos que o apoucaram nestes dias?

Por: Daniel Oliveira

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