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O temporal e as tampas do cemitério

Um vendaval de arrancar árvores, de trazer toneladas de arbustos pelo ar, de desaconchegar chaminés, abater antenas de televisão, destruir estores e despentear jardins, um vendaval como só antes observados na América e nas Filipinas, um temporal monstruoso arrancou as tampas dos jazigos, abriu as portas das gavetas dos cemitérios e soltou um zumbido dos mortos nunca antes ouvido.

Um grito imparável de milhares de mortos desassossegados, de repousos finais terminados e aí temos o zumbido, como um nevoeiro, a absorver a cidade, a engolir os sonhos dos vivos, a perturbar a serenidade do quotidiano. Ninguém sossega com as campas abertas, com as ossadas desnudas e a areia que anda por aí levando cinzas e restos dos defuntos. Portugal viveu um dia nunca visto. Não foi um rio que afogou o cemitério, não foi um terramoto que o cobriu de lama e de arbustos, foi um vento cruel que tornou “sem abrigo” as almas vestidas e as almas penadas, e os ricos mortos e os pobres enterrados e os bons e os maus, trazendo de novo as dúvidas, as palavras que não foram ditas, as dores das descobertas posteriores. O temporal da Madeira não foi pior, nem aquele vulcão dos Açores, este que ontem soprava era o vento que abria a estrada da morte, que expunha a fronteira, que se encheu do uivo do inferno e das penas do céu. Amanhã, milhares de vivos cobrirão as campas, taparão os jazigos, fecharão os portões para que repousem em paz e porque é de morte que se fala, ninguém chamará a Junta ou o Governo. Há que calar o zumbido e ele não tem seguro nem indemnização.

Por: Diogo Cabrita

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