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O sapo

Conheci pessoalmente Jean-Noël Schifano em Paris, mobilizados ambos para um debate subordinado ao tema “Literatura e Cidade”, organizado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Lera já parte da sua obra que me suscitara curiosidade genuína e, mais do que isso, funda admiração, e acolhi por conseguinte a perspectiva do nosso encontro como oportunidade de confrontar o homem com os livros que publicara, exercício de que nem sempre airosamente se sai. A personagem com que deparei demonstraria sem demora a incoincidência das duas máscaras, a construída e a descoberta, por certo com muito menor prejuízo para Schifano do que para mim mesmo.

Filho de pai siciliano e mãe francesa, o romancista pertence àquela raça de criadores de atmosferas, ou de alquimistas de lugares que as segreguem, manipulando sabiamente a mecânica dos cinco sentidos na obtenção de um cenário que não se fabrica de papier-maché, mas de verdadeira substância biológica. Escritor excessivo por ter muito para dizer, mas não por se afogar nos vagalhões da prosa, incluí-o com entusiasmo entre os da minha família, operação a que tanta vez nos sentimos tentados, mas que raramente se deve realizar. Os acontecimentos posteriores confirmar-me-iam a desvantagem de mais uma dessas súbitas girândolas de afecto, ou de desafecto, a que com frequência se expõem os trabalhadores das letras.

O meu campanheiro de mesa, pujante de sangue meridional, iria revelar-se refractário ao retrato que eu pintara dele, e onde o concebera apaixonado, mas afável, truculento mas decente. Muito pelo contrário trairia tudo aquilo que eu arquitectara, surgindo como um desses que os Franceses designam por “un emerdeur”, e a que nós, menos elegantemente, e de forma mais chã, chamamos “um merdas”. Assumindo a estentória voz dos machos-cábrios do sul da Europa, e manifestando a segurança de maneiras dos inseguros das suas maneiras, caprichou ele em exibir uma imponente ignorância da cultura portuguesa, e entredentes desatou a troçar sem imaginação de vários elementos do público.

Chega-me de novo Jean-Noël Schifano, e agora através de um artigo sobre Nápoles, “Un Anfiteatro Minerale e Liquido”, numa revista de Milão. E hesito entre passar de imediato à frente, a isso convidado pela recordação do infausto tête-à-tête, e engolir o sapo vivo que eventualmente promova a reposição de um grande gosto de leitura. Optando pela coragem de retomar a frequência das linhas de Schifano, eis que vejo premiada a minha magnanimidade, mas sem que me sinta obrigado a alterar a péssima impressão que o sujeito deixou em mim.

Fica este relato para proveito, e julgo imodestamente que para exemplo, de como pode um príncipe transformar-se em sapo para voltar a príncipe. E serve ele para testemunhar que vale a pena concedermos uns aos outros o direito de ao mesmo tempo nos apresentarmos estimáveis e nojentos, capazes de oferecer o que há de melhor, de mistura com o que há de mais podre, em cada um de nós.

Por: Mário Cláudio

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