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O rosto mais triste que há em Portugal

Tresler

O folhear das páginas do “Só”, de António Nobre, intitulado também pelo autor “O livro mais triste que há em Portugal”, traz à minha presença retratos saudosistas de personagens e paisagens lusas com o olhar da distância de Paris. E o título puxa-me para o tema de hoje.

De tanto desprezarmos a solidão e de a encararmos como uma condenação maldita, nem damos conta de que ela pode ser uma oportunidade de nos encontrarmos. Recentemente em entrevistas ou notícias de jornal, e de modo para mim surpreendente, Carmen Dolores e Virgílio Castelo, atores de vulto, aludiam a esses momentos magníficos que se passa sozinho. Castelo falava do normal de se “ter um espírito solitário”. Carmen Dolores falava dessas situações como ocasiões de “encantamento” que ela procurava, sozinha a remexer memórias e nostalgias nas caixas de papéis ou simplesmente parada no silêncio. Pessoalmente atraem-me também esses momentos de isolamento q.b., às vezes horas de sossego no sótão entre livros ou de passeio fútil pelos campos ou à beira da estrada. Nem me desagrada por vezes uma aventura cultural a solo em terras castelhanas, livre de horários de outros ou de programas de grupo em que temos de seguir em rebanho a todo o momento.

A solidão indesejada no entanto não se deseja a ninguém. Ela é a marca de uma incapacidade (às vezes transitória) de receber, que é também incapacidade de dar. Quando damos, habitualmente algo vem em troca. Pode é não haver paciência para esperar ou pode não haver imaginação / disposição para procurar para lá da distância mínima. Os tímidos em geral são mais atreitos à solidão, fugindo das ocasiões de convívio em que não se sentem treinados e parecendo mais predispostos para a aceitar com resignação e até naturalidade. Pior é a situação dos que, temperamentalmente sociáveis, mergulham nela por uma fatalidade, nomeadamente a morte ou a separação de um companheiro com quem se aceitou viver numa solidão a dois sem grandes cumplicidades fora do casal. Vencer uma separação ou uma morte constitui pois uma das maiores provações do ser humano.

No entanto, se há caso concreto de solidão que me confrange, é o fenómeno das migrações, coisa do dia a dia nos tempos que correm, sofrimento confrangedor nos primeiros tempos de adaptação e condenação que não desejarei aos meus filhos. E começo a pensar nos dias do meu pai ao partir de Portugal a salto em 1964 para França imaginando-o na frágil barraca, isolado de Portugal e ligado à família unicamente por cartas semanais. A solução era afogar-se em trabalho durante a semana e aos fins de semana, que não existiam no seu dicionário. Um dia, num período de férias entre nós, referiu-nos que entre a Páscoa e o Natal desse ano não tinha falhado um dia a trabalhar, entre “trabalho de empresa” e “bricolas”. Minha mãe aproveitou logo para lhe dizer que tinha ganho com isso mais uns tempinhos de purgatório por não guardar os dias santos mas ele não se mostrou incomodado, dizendo que também ia todos os domingos à missa. A solidão do emigrante passa-me nos olhos nos dias em que vejo aquela imigrante romena miserável a pedir esmola à entrada dos correios da Guarda (ultimamente mudou de sítio) e a quem hesito sempre em dar uma moeda. Com quem falará esta mulher? Que companhias terá, de escorraçada que é? Como serão os seus dias e o seu fim de dia ao chegar ao seu canto?

Quando se fala de solidão vem também sempre à baila a solidão do escritor na sua pose de escrever. A solidão do escritor é no entanto instrumental, encenada, com a função, como dizia Inês Pedrosa, de “escavadora do pensamento” e, citando Blanchot, uma entrega “à fascinação da ausência de tempo”. Momentos por vezes de sofrimento mas quase sempre ultrapassados pela obra que é parida dessa dor. Irene Lisboa, citada no mesmo texto de Inês Pedrosa, aponta esta solidão “regalada” do escritor como incomparável, apesar de tudo, com o drama da “solidão do desamparado”, essa sim indescritível, “tão complexa, tão avassaladora, tão vazia de factos e tão cheia de amargos (…), coisa pobre e de má tradução”. É essa a solidão que vejo todos os dias à porta dos correios a estender a mão.

Por: Joaquim Igreja

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