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O retrato expressionista da Gene Tierney

Opinião – Ovo de Colombo

Scorsese garante que ela é uma das suas atrizes favoritas. Darryl F. Zanuck, o chefe supremo da 20th Century Fox, um dos meus estúdios de eleição, chegou a afirmar que era a mulher mais bela do cinema. Se, por um lado, o talento e, principalmente, a beleza, são coisas consideradas discutíveis, Gene Tierney é a prova de que a natureza questionável e intangível daquelas pode tornar-se algo de bastante concreto. É impensável dizer que Tierney é má atriz e dotada de um rosto menos que perfeito. Sobre esta morena culta e cosmopolita, a RTP2 passou, em março, um bom documentário. Fiquei profundamente radiante com tal regalo e pensei em escrever sobre ela. Entretanto, foram surgindo temas mais oportunos e também muito apetecíveis, o que me obrigou a adiar este texto. Finalmente chegou o momento de a elogiar.

É irónica e peculiar a posição de Tierney em Hollywood. A Fox sempre foi uma espécie de casa de acolhimento para loiras curvilíneas (Grable, Haver e, claro, Marilyn), mas a mais bela estrela do estúdio é Tierney. Dotada de um contraste exótico patente na sua tez e olhos claros e cabelo escuro, aliados à sua face delicada e porte elegante, a atriz não precisou de ganhar terreno paulatinamente no mundo do cinema (virou protagonista logo no seu primeiro filme, convertendo-se numa grande estrela em terras de Tinseltown). Aliada à sua beleza física, está também a sua essência deveras especial: Tierney é tão ou mais sofisticada e delicada que Grace Kelly, mas não tão fria, distante.

O seu lugar no cinema está assegurado com filmes como “Laura” (1944), um dos “noirs” mais amados e glamorosos de sempre; “The Ghost and Mrs. Muir” (1947), uma das mais bem conseguidas histórias de natureza fantástica e, como não, o melodrama/“noir” “Leave Her to Heaven” (1945), que lhe valeu a única nomeação ao Óscar de melhor atriz. Trata-se do melhor título que existe para um filme (a expressão foi empregue originalmente por Shakespeare em “Hamlet”) e a mais bela película filmada em technicolor sem ser musical (é um pouco bizarro como, num filme tão maravilhosamente colorido, não aparece a Carmen Miranda a dançar mas uma mulher a provocar um aborto a si própria). Qualquer fã de Tierney é obcecado pela sua presença nesse filme. O seu magnetismo é impagável.

Tal como aconteceu com Scorsese, foi com “Leave Her to Heaven” que me apaixonei por Tierney, que dá vida a uma psicopata que faz tudo para ter o homem por quem está obcecada. Leonard Maltin refere, com razão, que o filme é um pouco “trashy” no seu argumento. De qualquer modo, Tierney compensa todos os defeitos. A sua interpretação contida e sofisticada nada envelheceu, não se mostrando datada como algumas performances algo histriónicas de Bette Davis ou Kate Hepburn (atrizes muito mais conceituadas). Ouvi ou li certa vez que Tierney, ao invés da sua vida deveras difícil, alimentava os seus filmes com uma serenidade reconfortante. Isto é certo. É, sem dúvida, uma atriz cujo modo de representar esteve à frente do seu tempo.

Miguel Moreira*

* Doutorando em Estudos Fílmicos e da Imagem (Universidade de Coimbra)

Sobre o autor

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