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O Rei vai nu? Não: está vestido com roupa alternativa

Ladrar à Caravana

Anda o pessoal atormentado com a pergunta que vai aparecer no referendo sobre uma coisa chamada Constituição para a Europa que, à excepção dum senhor francês que a ditou à secretária, acho que ninguém sabe muito bem o que é nem para que serve. Mas, talvez por vergonha de fazerem figura de ignorantes, ou por inconfessáveis arranjinhos, lá se puseram de acordo nesta questão de transcendente interesse nacional. E pariram esta magnífica pergunta:

“Concorda com a Carta de Direitos Fundamentais, a regra das votações por maioria qualificada e o novo quadro institucional da União Europeia, nos termos constantes da Constituição para a Europa?”

Para parlapié de político-advogado-criptólogo principiante não está mal. Contudo, corre-se o risco de que a maralha comece a fazer exercícios de interpretação e, para se divertir um bocado, acabe por responder Não. Acho sempre deliciosa a aflição dos burocratas de Bruxelas e dos staffes avençados espalhados nas parvónias, a gritar avisos do apocalipse quando os dinamarqueses ou os suecos respondem que Não a uma bacorada qualquer vinda lá de Bruxelas. Está claro que no referendo a seguir, respondem Sim, porventura assustados com as penas do inferno anunciadas pelos comissários preocupados com os seus empregos e pelos seus apoiantes locais igualmente preocupados com os seus empregos.

Mas vamos por partes: que raio será uma Carta de Direitos Fundamentais? O ás de espadas? A dama de ouros? Um duque? Ou será uma daquelas cartas esquisitas do Tarot que a Maya deita na televisão? E a regra das votações por maioria qualificada? O que será uma maioria desqualificada? Serão pessoas que não pagaram as quotas ao partido e não podem votar? E o que pensar do novo quadro institucional da União Europeia? Será algum retrato a óleo do José Barroso pintado pela Paula Rego? É complicado isto, da hermenêutica…

Mas se ninguém sabe muito bem o que é nem para que serve a Constituição para a Europa, então a coisa deve ser um magnífico objecto de design. Daqueles bué reluzentes, que se encontram nas lojas todas stylish, assinados por arquitectos e costureiros famosos, que ninguém percebe muito bem o que sejam nem para que raio possam servir. Mas que ficam lindamente em cima da consola, com um projector de design italiano apontado para lá.

Faz mesmo lembrar a história do Rei Vai Nu. Nada aconselhável, tendo em conta que estamos quase no Inverno, e está um frio do caraças.

Ora bem, estava eu a arrumar a tralha, todo contente, a preparar-me para enviar este texto para o jornal, quando ouço a notícia que aquele ministro muito engraçado que inventou o conceito literário de “cabala involuntária” se tinha posto a mandar bitaites sobre esta questão e que era preciso repensá-la. Está mal. Um tipo esforça-se, e à última hora vem um ministro qualquer estragar tudo? Que coisa!

Mas, mesmo assim, para ajudar à coisa pública, que eu sou um cidadão consciente dos meus deveres, sugiro ao senhor ministro este repensar da questão:

“Condescende Vossa Excelência com a dimensão ontológica plasmada no Capítulo proeminente do Tratado, assumido como estrutura autopoietica bem como com a relevância epistémico-axiológica determinada pela confluência de vectores mais idiossincráticos reposicionados pelo édito convencional e o normativo conceptual inerentemente estruturante preceituado para a União Europeia, na tramitação constante da valorização e concatenação das variáveis de decisão de carácter metafuncional na denominada Constituição para a Europa?”

Assim, sim, temos uma pergunta como deve ser feita. Um autêntico modelo de clareza e transparência.

E o Rei, assim, continuará nu, como deve ser e manda a tradição.

Por: Jorge Bacelar

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