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O Regresso da Praxe

Quebra-Cabeças

Quando cheguei a Coimbra, em 1979, justificava-se a suspensão das tradições académicas com o luto que tinha sido decretado muitos anos antes, ainda no tempo da “Outra Senhora”. Por isso não havia ainda queima das fitas e eram muito poucos os estudantes que vestiam capa e batina. Também não havia praxe. No entanto, quanto a esta, o caso era um pouco diferente. É que várias repúblicas, entre as quais a minha, se tinham declarado anti-praxe ainda antes da instauração do luto académico. As razões eram simples, pelo menos no nosso caso: considerávamos a praxe retrógrada, estúpida, inútil, anti-democrática, representativa de uma mentalidade que nada tinha a ver connosco. Não aceitávamos, por exemplo, que alguém nos dissesse o que devíamos vestir, que comportamentos deveríamos ter, se podíamos sair ou não. Não aceitávamos, numa palavra, que alguém nos desse ordens ou restringisse de que forma fosse a nossa liberdade.

Na altura pensávamos que o regresso das tradições académicas iria deixar de fora esse feio bicho, mas enganámo-nos. Com as capas e batinas vieram as colheres de pau, os caloiros a medir com um palito o pátio da universidade ou a serem rapados, ou agredidos com a chamada “sanção de unhas”, ou sexualmente seviciados apenas porque “é tradição”. Não tardou muito, e já apareciam os códigos da praxe (quem tenha curiosidade, consulte o do Porto em http://pwp.netcabo.pt/qvidpraxis/cp01.html

), reles repositórios de proibições, sanções, insultos, de regras arbitrárias e imbecis. Desses códigos da praxe resultava ainda que jovens estudantes, supostamente de cabeça desempoeirada, estabeleciam entre si, e impunham pela força, medievais sistemas hierárquicos, antes próprios dos mais sinistros regimes do nosso tempo do que de uma sociedade aberta e civilizada. Desses códigos, no fundo, resulta apenas uma regra: a possibilidade dada a uns de abusar arbitrariamente de outros.

A praxe acabou por se espalhar como uma doença e os proprietários dos seus ritos acabaram por canibalizar toda a vida académica. São cada vez menos os estudantes que têm a coragem de se declarar contra a praxe, com medo das represálias e da ostracização. São cada vez mais os que vendem a troco de nada a memória dos melhores anos da sua vida, aceitando agora coisas que a idade da razão lhes retribuirá em vergonha. Ou então não, ou então vão ficar retidos para sempre nas estruturas mentais desse mundo de putos, semi-putos, futricas, caloiros, pastranos, merdas de doutores e doutores de merda. Que lhes faça bom proveito.

Por: António Ferreira

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