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O Que Resta da Esquerda Portuguesa?

Na final do torneio olímpico de basquetebol, em 1972, os Estados Unidos da América enfrentavam-se à União Soviética. A três segundos do fim ganhavam por 50 a 49. Os soviéticos pediram desconto de tempo logo a seguir ao último cesto americano, mas o árbitro não se apercebeu e deu o jogo por findo logo a seguir. Após protestos na mesa do júri, o jogo foi reatado para se jogarem de novo os últimos três segundos. Mal houve tempo para um passe, que atravessou o campo todo para as mãos de Alexander Belov. Este, no último instante do jogo, encestou para a vitória soviética. Ainda há comunistas, por este mundo fora, que contam esta história com lágrimas nos olhos. Enfrentavam-se o Bem e o Mal e o Bem ganhava após um combate épico, com um final dramático. Era a vitória do socialismo sobre o capitalismo, a vitória da utopia sobre o materialismo corrupto do ocidente. Não interessava o facto de a equipa soviética, teoricamente composta por amadores, ser totalmente composta por profissionais; ou o facto de a equipa americana ser integrada apenas por jogadores dos campeonatos universitários (que na prática eram também todos profissionais), já que só no torneio olímpico de Barcelona, vinte anos depois, apareceram os melhores da NBA.

Morta hoje a utopia, desaparecida a URSS, nada mais restou para muitos a não ser o ódio aos americanos. O jornalista inglês Nick Cohen, também ele proveniente da esquerda, deu por si a reflectir sobre as causas dos movimentos comunistas, socialistas ou, em geral, radicais. O que descobriu (Cf. O Que Resta da Esquerda?, Aletheia Editores, 2007) é inquietante: pouco mais existe do que anti-americanismo e um certo anti-semitismo. Como aliados, ou ao menos “parceiros silenciosos”, os actuais partidos de esquerda contam com os radicais islâmicos. Nas questões domésticas, apresentam a sua agenda possível: os direitos dos trabalhadores, a luta contra o “patronato” e as multinacionais, as questões ambientais (o que representa um grande passo em frente, se considerarmos os crimes contra o ambiente perpetrados a leste da “cortina de ferro”) e as questões “fracturantes” (direitos dos homossexuais ao casamento, despenalização do aborto e do consumo de drogas, etc.). Quanto a questões internacionais, apenas três: os malefícios da globalização, o imperialismo norte-americano, os pecados israelitas. Não há uma palavra sequer (de critica ou ao menos preocupação) para a Coreia do Norte, para o Darfur, para o comportamento dos dirigentes chineses (e os direitos dos trabalhadores na China?), para o Zimbabwe, para o estatuto da mulher nos países islâmicos, etc., etc.

E em Portugal? Sugiro visitas aos sites do Bloco de Esquerda e do PCP. O “Bloco”, nas doze teses politicas aprovadas na sua IV Convenção (Cf. http://www.bloco.org/media/tesespoliticasIV.pdf), ataca na primeira George W. Bush, denuncia na segunda a “política de guerra infinita” seguida pelos EUA, na terceira a globalização neoliberal como regime repressivo com a sua máxima expressão no “Arquipélago Guatanamo” (que seria mais ou menos a mesma coisa que o Arquipélago de Gulag, com, diria eu, uns milhões de mortos de diferença – mas, como diria Estaline, esta contabilidade é uma simples estatística), na quarta o nascimento de um partido global de esquerda a partir da luta contra a guerra no Iraque. No site do PCP não se encontra um documento que sintetize uma visão do mundo do partido nos termos em que o faz o Bloco, mas as mesmas teses encontram-se espalhadas por centenas de documentos. Lá estão definidos Israel e os Estados Unidos como sendo o inimigo, lá está a solidariedade com a Coreia do Norte, os Talibãs e todos os que, em geral, se opõem aos americanos ou aos israelitas. O problema disto é que há mais mundo, muito mais. Parece até que há demasiado mundo para tão pouca esquerda.

Por: António Ferreira

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