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O que podemos fazer por ti?

Jogo de Sombras

Regressei à Guarda fez este Verão sete anos. Foi uma decisão sem sobressaltos, oito anos após a partida – quase uma década em que atravessei sentimentos contraditórios sobre a terra onde nasci e onde deixei em lista de espera as referências mais marcantes da vida até então vivida. Recém-chegado ao outro lado do mundo, com 23 anos feitos, larguei-me à aventura, à descoberta, à paixão e à ambição. Para o bem e para o mal, devo muito do que sou e do que faço a esta matricial quadratura de sinais. É por isso que não confio na inevitabilidade do destino, não professo fé padronizada, não concebo a acção política confinada a agremiações soturnas e oligárquicas, não sigo gurus, não tolero meias-tintas, detesto o cinzento e não aprecio aqueles que saltarinham inquietos entre deus e o diabo. A vida não é um jogo a feijões nem uma acomodação à conquista do possível. Olhando para a Guarda à distância de oito fusos horários, comecei, naquele tempo iniciático, por fazer votos de não retorno – nem à cidade nem ao país. Gradualmente, porém, fui admitindo voltar – ao país, pelo menos. Depois coloquei a cidade nas opções supletivas – e apalavrei, numas férias, uma área generosa com paisagem de Nascente e exposição a Sul onde não enjeitava construir a minha própria base logística entre o passado e o futuro, entre a memória e as aspirações, entre o legado de uma vivência marcante e os desafios do recomeço. A ideia acabou por ser, afinal, determinante. E a este acaso juntaram-se os ensinamentos dos anos intensamente vividos numa encruzilhada de culturas e saberes, com o privilégio de ter trabalhado por dentro de um acontecimento singular da nossa História: a transferência da Administração de Macau para a China, em 1999. Um deles foi o de que embora sejamos do lugar que pisamos ninguém deve crescer sem raízes, sem referências, sem consanguinidades, sem afectos. Muito menos uma criança que num ano de vida apenas convivera com os pais e o cingido círculo de amigos destes e com a empregada filipina e o infindável círculo de parentes desta. O outro radica na noção do espaço. Portugal ocupa um território que mede menos de 200 quilómetros do mar à fronteira. À escala global isto é coisa nenhuma. O discurso regionalista soa a ridícula querela de courela. Os agentes políticos de proximidade insistem na imitação e na multiplicação dos piores vícios do Estado centralista – sonham com a sua própria jurisdiçãoizinha para exercerem também o poder discricionário – em vez de atacarem a raiz do problema com exigência e concertação, obrigando a estabelecer uma estrutura horizontal que distribua recursos com equilíbrio. Era isso que eu pensava possível, em 2000, quando via aproximarem-se, por exemplo, as auto-estradas, os programas de requalificação urbana e os incentivos ao investimento. Antevia um horizonte de qualidade de vida. Ansiava pelo privilégio de, vivendo numa cidade pequena, poder chegar com rapidez e conforto a Lisboa ou a Madrid, à Galiza ou ao Algarve. Planeava transformar a tal base logística também em casa para morar, para desfrutar, para trabalhar, para imaginar, para criar. E confesso: cheguei a pensar que em cinco anos a Guarda seria uma cidade do caraças. Mesmo do caraças. Passaram cinco e passaram sete. Não lamento a opção que tomei, antes pelo contrário. A qualidade de vida existe, as distâncias encurtaram, concebi o meu próprio espaço e – o mais importante – alcancei realização pessoal e profissional à altura do que ansiava para a segunda metade dos trinta. Gosto do lugar onde vivo, sou pai babado, tenho paixão pela profissão que exerço, sinto orgulho no projecto que dirijo e conservo uma enorme admiração por aqueles com quem partilho a aventura. Só que esta não é ainda uma cidade do caraças. O que podemos nós – os que viemos, os que voltámos e os que ficámos por vontade própria, sem constrangimento, frustração, ressentimento nem ajuste de contas – fazer por ti, Guarda?

Por: Rui Isidro

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