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O que há de vir

Theatrum mundi

Depois que o memorando de entendimento com a ‘troika’ FMI / Banco Central Europeu / Comissão Europeia foi assinado, e conhecidas as suas exigências, instalou-se uma estranha sensação de alívio. Como se se esperasse o apocalipse ou como se, pelo menos, fosse inevitável uma retenção considerável dos rendimentos para abater o défice e a dívida pública no curto prazo. Como nada disso se passou, o ajustamento exigido pela troika começou a parecer apenas mais um conjunto de sacrifícios dispersos, de uma longa lista de sacrifícios com que há quase dez anos somos fustigados. É verdade que agora os sacrifícios são impostos de fora, e que nos dizem que não haverá margem para falhar, mas para o cidadão corrente isso diz pouco. Para o cidadão corrente, isso há de continuar a ser coisa dos políticos, algo longínquo que permanece numa esfera inatingível e incompreensível, e haverá sempre políticos para culpar caso os sacrifícios não dêem resultado. Os discursos pungentes dos antigos presidentes da República, e do atual, por ocasião das cerimónias do 25 de Abril, soaram a ralhete de quem, agora no Olimpo, fala com a autoridade das coisas bem feitas e do dever cumprido. Risível e trágico.

Depois de assinado o memorando de entendimento com a troika, pareceu possível regressar a uma certa alienação, o estado que nos caracterizou enquanto país nos últimos trinta e cinco anos, e que promete agravar-se com o decorrer da campanha eleitoral. Eleitores e candidatos preparam-se para regressar à estrada como se nada se tivesse passado e como se esta fosse mais uma eleição. Poucos quererão reconhecer que o resgate financeiro, e tudo o que o tornou inevitável, limitaram dramaticamente as circunstâncias do sistema político e económico que o regime pode controlar ou até influenciar. E que, por isso mesmo, este pode bem ser um momento definidor da degradação da própria democracia. O que há de verdadeiramente trágico nesta história é que a geração que lutou pela democracia pode vir a ser responsável pela abdicação da mesma. José Sócrates pode afirmar até à exaustão que o endividamento e o aumento do défice são fruto da crise global e que todos os países europeus passam por dificuldades, mas de certo não compreendeu que um país como Portugal, periférico e vulnerável, não podia correr esse risco. E preferiu ignorar a evidência até muito tarde. Demasiado tarde. Mas a atitude de Sócrates não é mais do que o exemplo acabado da ingenuidade e ignorância dos dirigentes políticos portugueses dos últimos trinta e cinco anos, e da população em geral, para quem a integração europeia era um jogo de sucesso sem hipótese de retrocesso. Pode não ser esse o caso.

Muito provavelmente, o desafio mais importante do governo saído das próximas eleições não será, apesar de tudo, o de pôr em prática o acordo com a troika. Será antes o de assistir e talvez participar, numa posição doravante sempre fragilizada pelas debilidades financeiras e políticas demonstradas durante a crise da dívida soberana, na próxima etapa da construção europeia. E o que há de vir, tanto pode ser mais integração como descomunitarização. Há dois cenários contrastados que se impõem neste momento de rutura, e as fragilidades portuguesas só acentuam a irrelevância política com que os países periféricos costumam ser tratados em momentos semelhantes. Por um lado, mais integração significará algum tipo de governo económico europeu, gestão conjunta das dívidas, fiscalidade harmonizada e, claro, perda inevitável por parte do Parlamento dos seus poderes de fiscalização. Por outro, descomunitarização significará o fim do euro ou, pelo menos, a reconfiguração da zona euro para proteger a moeda e a economia dos países que nela se manterão. Trágico trágico é o caminho que trouxe Portugal à posição vulnerável que o torna irrelevante neste momento definidor para a Europa.

Por: Marcos Farias Ferreira

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