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O princípio do utilizador-pagador

Razão e Região

No dia 22 de Dezembro, no Fundão, a Assembleia da COMURBEIRAS-CIM aprovou, por unanimidade, uma moção sobre a introdução de portagens nas auto-estradas que atravessam o seu território, desaprovando-a, criticando a ausência de diálogo com as instituições representativas da região e exigindo, mesmo assim, a alteração do preço por Km e a aplicação de medidas consistentes e duradouras de contenção de custos para os residentes. A Assembleia associou-se, assim, a idêntica posição já tomada pelo Conselho Executivo.

Como certamente o leitor se recordará, a introdução de portagens em todo o território nacional, sem excepções, foi abundantemente defendida e teorizada através do princípio do utilizador-pagador. Um princípio que, a ser radicalizado, acabará com a própria ideia de sociedade como «contrato social». Vale, pois, a pena repropor algumas considerações sobre o assunto.

Que significa, pois, o tão invocado princípio do utilizador-pagador? Este princípio tem sido utilizado como fundamento legitimador da generalização do pagamento directo de bens públicos. Por exemplo, do fim das SCUTs e da alteração qualitativa e quantitativa das taxas moderadoras na saúde. O seu significado literal é este: quem usa determinados bens deve pagá-los. Como princípio, tem alcance universal. E transporta consigo um valor de coerência e de justiça relativa: o que tem utilidade tem valor. Este princípio procura traduzir directamente o valor de uso em valor de troca, justificando, por isso, a sua conversão financeira directa em termos de mercado. Isto, na lógica da economia e da esfera privada. O que acontece, todavia, é que, na esfera pública, ele não vale nada se não for referido ao contrato social ou às funções sociais do Estado. O significado deste princípio não é o mesmo se o referirmos ao «Estado Social» ou ao «Estado Mínimo». O Estado Social impõe uma forte carga fiscal porque toma à sua responsabilidade bens públicos essenciais, garantindo a sua gratuitidade tendencial, logo, uma aplicação indirecta do princípio. Ele deverá, pois, ser questionado a partir dos vários graus de intervenção do Estado e relacionando-o sempre com o princípio universal da obrigação fiscal.

Se fizermos uma rápida incursão pela gestão pública dos bens essenciais logo constataremos múltiplas diferenciações. Há bens gratuitos (educação), pagos parcialmente (saúde, ensino superior) e pagos integralmente (auto-estradas). Há bens com taxas independentes do uso (serviço público de rádio e televisão – taxa para o audiovisual) e dependentes do uso (taxas moderadoras). Mas há, no meio disto, uma clara linha de demarcação que subjaz a estas diferenciações: são tendencialmente gratuitos os bens públicos essenciais e são tendencialmente pagos os bens públicos não essenciais. Assim, pergunto: as auto-estradas são bens públicos não essenciais? Por que razão não são gratuitas ou, então, não são só parcialmente pagas (em homenagem à qualidade do serviço), uma vez que todos pagamos impostos? Ou então: por que razão tenho de financiar directamente a RDP e a RTP quer usufrua ou não dos seus serviços?

A sobrepor-se aos critérios do próprio Estado Social para diferenciar o que deve ser pago do que deve ser gratuito surge agora o princípio do utilizador-pagador. Só que a sua validade e a sua universalidade originárias não provêm da esfera pública, mas da esfera económica privada, representando a sua importação generalizada para aquela esfera uma iníqua colonização da lógica pública pela lógica privada.

As diferenciações, quando haja lugar para elas, terão de ocorrer em obediência a algumas assunções fundamentais: à universalidade do acesso aos bens públicos essenciais; ao seu financiamento mediante a aplicação universal do regime tributário; à definição dos bens públicos essenciais objecto de gestão e de financiamento públicos; e, finalmente, à rigorosa definição abstracta das condições em que os bens públicos poderão ser – e em que grau – objecto de ulterior tributação.

De qualquer modo, do ponto de vista do Estado Social, será sempre, em princípio, altamente problemático que um bem público essencial possa ser integralmente pago pelo contribuinte-utilizador. O suplemento de qualidade fornecido pelo Estado a estes bens poderá quando muito levar ao pagamento parcial do custo de utilização, não tendo sentido a aplicação integral e generalizada do princípio do utilizador-pagador.

Este princípio, levado às suas extremas consequências, conduziria à própria extinção da esfera pública e, consequentemente, ao fim dos impostos, da garantia pública de segurança comum (externa e interna), da educação gratuita, do serviço público de saúde. Numa palavra, ao fim do contrato social. Quem usa e abusa deste princípio, sobretudo se tem responsabilidades públicas, deveria saber o que está a fazer. Deveria conhecer as consequências últimas da sua directa importação para a esfera pública fora de qualquer esquema de referência ideal acerca das funções sociais do Estado. E deveria, sobretudo, ser coerente. Assumindo que este princípio deva fundar o acesso aos bens públicos essenciais, então deverá também aceitar o fim tendencial dos impostos, libertando, deste modo, recursos privados com os quais o cidadão poderá pagar tudo aquilo que usar, em homenagem a esse novo princípio constituinte de um contrato social residual. Mas será isto possível? Se não for (e não é), então que se diminua a carga fiscal, em vez de a aumentar cada vez mais, até ao limite do insuportável!

Por: João de Almeida Santos

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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