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O paradoxo português

Razão e Região

Tratando-se de uma reflexão sobre uma interessante obra de Guilherme d’Oliveira Martins, penso que será útil repropor aqui, com ligeiras modificações, um texto que recentemente publiquei no «Diário Económico» e que procura, com o autor, entrar no íntimo da nossa problemática identidade nacional.

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Lembrei-me deste título – «O paradoxo português» – ao ler o último livro de Guilherme d’Oliveira Martins, «Portugal, identidade e diferença» (Lisboa, Gradiva, 2007): uma longa incursão pela história reflectida de um país que teima em oscilar permanentemente entre a euforia das suas míticas origens e a angústia dos destinos sempre trágicos a que parece condenado. E registei, com interesse, as palavras de António José Saraiva: «Não descreio de Portugal, mas procuro a sua viabilidade». Um País que parece viver entre a grandeza do seu pioneirismo cosmopolita e uma fixação atlântica mais resistente do que parece ao desafio continental. Como se o regresso à sua identidade física originária ainda não se tivesse consumado plenamente e sofresse o permanente sobressalto de uma readaptação mal conseguida. O que Guilherme d’Oliveira Martins nos oferece, animando-nos, é uma viagem ao processo multicentenário português, através do universo discursivo dos nossos maiores, construindo um imenso fresco – até na exaustiva descrição física das suas regiões, do Minho ao Al-Gharb, com o Conde de Ficalho, Torga, Orlando Ribeiro, Aquilino, Raul Brandão e tantos outros mestres da narrativa – onde se forma a imagem de um País que se exprime como «língua de várias pátrias» (p.15), própria de quem construiu a sua forte identidade no próprio processo de formação (pp.17 e 67-95). Ou seja, uma existência que se produziu como identidade forjada. Até ao excesso: «excesso de identidade – eis do que muitas vezes nos queixamos. Fica a sensação de que a História nos marca um destino que oscila entre a glória e o declínio» (p.120). Como se esse fosse o destino de todas as identidades fortes. Tão fortes que conseguem atingir aquela glória impossível de manter no tempo incerto de uma História feita daqueles «corsi» e «ricorsi» de que falava Giambattista Vico.

«A pátria é a língua», lá onde o patriotismo surge, também ele, como processo de construção reflexiva e de aperfeiçoamento da identidade, mas também de expansão e de conquista simbólica de novos mundos. A língua é isso. Ela pensa-nos e projecta-nos e, por isso, pode ser a medida da nossa própria ambição. Ela «é pátria de várias pátrias» (p.40) e, deste modo, também medida certa do nosso cosmopolitismo. E, assim sendo, será ela o «bypass» decisivo para a encruzilhada da globalização, lá onde convive criativamente a identidade e a diferença, a auto-afirmação permeável às influências aleatórias do fluxo mundial. Não só «as identidades nacionais não perderam actualidade e pertinência com a mundialização» (p.58) como – com essa língua lugar-de-pátria e metaterritorial – se afirmam e se transportam para além de si próprias, abertas ao comércio cultural e material. Um novo cosmopolitismo que se enxerta nos fluxos materiais da globalização.

Diz Oliveira Martins: «O debate português desde o último quartel do século XIX foi dominado pelo dilema entre o “desenvolvimento europeu” e uma “vocação universal”». A nossa identidade forte e inquieta a isso nos obrigou sempre. A um olhar metaterritorial, transnacional, universal. Talvez isso explique a paradoxal fragilidade da nossa forte identidade, como se esse dilema nos tivesse levado ao desleixo identitário, ao abandono da retaguarda, aos descuidos de manutenção, fazendo jus à voz popular: «em casa de ferreiro espeto de pau». Mais. O culto onírico de uma grandeza sem retorno, a tristeza de uma saudade sempre incerta, o sebastianismo recorrente da nossa tradição ou o «patriotismo retrospectivo» e resistente, esta sequência de estados de alma recorrentes no nosso intercâmbio existencial ao mesmo tempo que alimenta sonhos de superioridade moral é fonte, também, de depressão colectiva e de incapacidade prospectiva, impedimento de robusta afirmação num tempo exigente de desafios. É esse, também, o sentido das recorrentes alusões de Oliveira Martins ao espírito crítico, mas construtivo, do nosso desapaixonado Eduardo Lourenço: «em lugar de uma visão do País imaginário, encruzilhada de sonhos e de má-língua, Lourenço procura ser o camponês do Danúbio, com os pés assentes na terra – a dizer que tudo depende do que somos e do que queremos ser» (p.171). Pois é. Num País onde a realidade virtual das Cassandras deste mundo parece cair-nos em cima como uma capa de chumbo quotidiana, talvez o regresso ao real tenha em si o valor do mais sofisticado dos conceitos, capaz de derrotar essa grandiloquente narrativa do nacional-pessimismo recorrente.

Por: João de Almeida Santos

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