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O país que sobreviver

Theatrum Mundi

Não há maneira de saber que país vai ser aquele que vamos encontrar do outro lado do túnel da crise – seja quando for que isso venha a acontecer – mas esta é certamente uma interrogação que vale a pena colocar desde já. Mas como é que o país sequer entrou na crise? Como foi possível cair num ciclo vicioso de falta de crédito e recessão económica para o que não se antevê saída, nem fácil nem rápida? De onde vem este sentimento de declínio inelutável quando ainda ontem se desatava a euforia a propósito de feitos no mínimo questionáveis?

A luta partidária e sindical do momento parece não deixar margem para considerações aparentemente teóricas, mas refletir sobre o que nos trouxe aqui é fulcral para decidir por onde seguir. A crise portuguesa (e a crise europeia no seu todo) é só mais uma crise na marcha implacável da globalização, é a outra cara da integração económica e financeira num mundo liberalizado que tem como bandeira o fim das fronteiras para a circulação do capital e das mercadorias. A revolução modernizadora cavaquista dos anos 1980 e 1990 prometia integrar Portugal neste admirável mundo novo, abrindo as fronteiras e competindo no mercado com produtos baratos e uma moeda fraca que permitiam criar e distribuir riqueza com base nas exportações. Foi esta estratégia cavaquista, saída da crise do início dos anos 1980 e dos remédios impostos pelo FMI, que permitiu, no curto prazo, consolidar o “welfare state” e, depois, com a chegada a rodos dos fundos europeus de coesão, criar a ilusão de desenvolvimento através da explosão do gasto (ou investimento) público em todos os níveis da administração (central, regional e local). Eram os tempos do fim da era soviética que acentuavam a perceção de um país europeu, evoluído, competitivo, mas de facto um país que chegara demasiado tarde à era da afluência e que não saberia adaptar-se à mudança de paradigma que estava ao voltar da esquina.

Apesar do discurso e da injeção de fundos centrados na formação profissional, o país não conseguiu fazer a transição para um novo modelo produtivo e não conseguiu resistir à chegada de novos membros ao clube europeu. À medida que estes souberam aproveitar as regras do jogo europeu, foi-se acentuando a quebra no investimento em Portugal e a destruição de postos de trabalho, começando um período de crescimento económico débil e estagnação, pontuado por momentos de recessão. Veio a moeda europeia forte e as exportações ficaram mais caras, num momento em que a China aderiu à Organização Mundial do Comércio (OMC) e as suas exportações passaram a ser tratadas sem discriminação. O resto tem sido sobejamente comentado. A criação de uma zona monetária integrada na Europa provocou a baixa do preço do dinheiro e os mercados subavaliaram o risco associado ao endividamento público e privado de algumas sociedades integradas nessa zona. Bastou o rastilho da crise do “subprime” nos Estados Unidos para que as falências em cadeia de grupos financeiros transnacionais e a posterior escassez do crédito tivessem posto a nu as insuficiências da união económica e monetária na Europa e precipitado as crises da dívida soberana. O mundo ocidental estava acostumado a uma face diferente da globalização, agora a realidade é outra.

O país que sobreviver à troika, à austeridade e ao colapso da Grécia será certamente um país mais pobre, menos inclusivo, menos coeso territorialmente, menos soberano e com menos voz na Europa. Eu sei que a expetativa de Passos Coelho é bem diferente, a de que a providência permita ganhar o tempo suficiente para que um certo ciclo virtuoso produza confiança nos mercados e a austeridade se transforme em crescimento e na transformação real do país. No estado atual da globalização – leia-se volatilidade dos mercados financeiros e contágio de todas as desconfianças – e com a desagregação da Europa isso não deixa de ser um salto de fé. Seja como for, o país que sobreviver terá um longo caminho para inventar e pôr de pé um projeto viável e reconstruir a confiança da comunidade.

Por: Marcos Farias Ferreira

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