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O mito de Medeia

“Pronunciamos um nome, e como as paredes são permeáveis, entramos no tempo que foi o seu, encontro desejado. Sem hesitações, ela responde das profundezas do tempo ao nosso olhar”

Christa Wolf, Medeia. Vozes

Que mulher é essa cujo nome e cujo rosto, tantos séculos depois, o tempo ainda não apagou da nossa memória?

Que recordações e que imagens temos nós dessa bela princesa do Sol?

Ligado, desde sempre, à expedição dos Argonautas, que sob o comando de Jasão, viajaram até à Cólquida a fim de reaverem o Velo de Ouro, o mito de Medeia narra a paixão da princesa colca pelo herói e a forma como ela, com os seus poderes de feiticeira, o irá ajudar no seu difícil empreendimento. Por amor, para poder seguir viagem com Jasão, Medeia trai o pai, abandona a pátria e esquarteja o próprio irmão para atrasar as tropas de seu pai quando perseguem a expedição.

Mais tarde, já em Corinto, e mãe de dois filhos, quando Jasão lhe confessa que pretende casar com a filha do rei, Medeia, numa dor sem fim, condenada a ser sempre a Outra, num amor e numa pátria que não lhe pertencem, pratica, numa atitude de vingança, o mais hediondo dos actos – o infanticídio. Apresentada em 431 A.C. nas Grandes Dionísias, a Medeia de Eurípides, continua, ainda hoje, dois milénios depois, a fazer parte do imaginário ocidental. A lenda dos Argonautas, a magia de Medeia e a temática do filicídio, atravessou muitas histórias e poemas da Idade Média, e, desde o Renascimento até hoje, o mito da princesa bárbara, continua a representar, em diversos países, pela sua singularidade e complexidade, motivo de numerosas apropriações nas mais variadas formas de arte: dramas, óperas, ballets, romances, poemas, pinturas, esculturas, peças musicais e filmes.

E apesar das variações do mito divergirem em alguns aspectos, foi de facto a magia de Medeia e o infanticídio praticado por esta, ou executado friamente pelas gentes de Corinto, que se perpetuou no tempo e no espaço.

Sol e Lua, Céus e Terra, feiticeira e humana, mulher apaixonada e amante traída, fratricida e filicida, encontro e desencontro, amor e ódio, a princesa do Sol continua a interpelar-nos veemente, mas todos a vemos e lhes respondemos de maneira diferente.

Se Eurípides nos deixou a imagem de uma mulher apaixonada, ao ponto de trair a pátria e a família e matar o próprio irmão só para poder seguir o seu amor, se ele nos deu a conhecer a dor da amante traída e a mãe terrivelmente perdida, que num acto extremo de vingança aniquila a própria carne e o próprio sangue, por sua vez, Christa Wolf, escritora contemporânea de literatura alemã, desconstrói, por completo, a efabulação imortalizada pelo dramaturgo grego, e apresenta-nos em Medeia. Vozes uma Medeia isenta de qualquer crime. No romance da escritora alemã, cuja leitura aconselho, Medeia não é mais a mulher violenta e assassina, ela é vítima de uma cultura patriarcal e repressiva.

Por: Cláudia Fonseca

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