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O matagal nas estradas ou como viver com canteiros e sem cantoneiros

Sinais do Tempo

Este verão, ao cruzar estradas pelo país fora, veio-me à memória o cantoneiro. Uma figura que me acompanhou na minha infância e que foi desaparecendo, sem que consiga identificar ou recordar a data ou o momento.

Para os que não tiveram oportunidade de conviver ou desconhecem esta profissão, o cantoneiro era uma pessoa responsável pela manutenção de uma rede de estradas numa dada região. A manutenção das vias focava-se na qualidade do piso alcatroado, na sinalização e, citando o Regulamento Geral das Estradas e Caminhos Municipais – Lei nº 2110 de 29/8/1961, acrescia ainda «fazer o serviço de polícia, assegurar o pronto escoamento das águas, tendo sempre para esse fim as valetas limpas… remover do pavimento a lama e imundícies; conservar as obras de arte limpas de terra, de vegetação ou de quaisquer outros corpos estranhos; cuidar da limpeza e conservação dos marcos…; prevenir o chefe das ocorrências que se derem no cantão onde prestam serviço e cumprir rigorosamente e sem demora as ordens dos seus superiores». Das atividades não constavam as rotundas porque, simplesmente, eram uma raridade na época.

O cantoneiro fez parte da minha infância e dos meus temores e pesadelos. Na aldeia onde passava os fins-de-semana tinha um vizinho, do qual só recordo a farda e o chapéu, por mais esforço que faça o rosto apagou-se tal era a importância do vestuário. Era cabo dos cantoneiros, uma posição na cadeia hierárquica que lhe atribuía importância até ao infinito.

No beco contíguo à casa ficavam guardados os bidões de alcatrão, o pequeno trator, a caldeira escura de onde escorriam estalactites pretas, material indispensável para levar a bom porto a tarefa constante na lei. Acrescia ainda a lenha de restos de pinho atada em molhes, os pequenos montes de brita e de areia.

É exatamente da areia que vem um dos temores à figura do cantoneiro. A reparação de um buraco na estrada era um trabalho de uma engenharia rigorosa com aplicação da brita, do alcatrão líquido, seguido de uma pulverização e da maldita areia. Inimiga dos condutores de duas rodas. Ao passar por cima sentia-se nas rodas a falta de aderência e à expressão de pânico associava-se a taquicardia de quem adivinhava o rasgar dos joelhos em qualquer momento.

A farda era austera, típica do Estado Novo, o chapéu de aba larga para proteger do sol, «casaco e calça impermeável, fato de couro ou fato de macaco, quando estivessem trabalhando com betume». conforme constava do Manual do Cantoneiro, editado em 1954, que acrescenta «…barbeado e de cabelo cortado, não esquecendo nunca que deve impor-se pela sua apresentação». No verão podiam desapertar os primeiros dois botões da camisa.

Mas o cantoneiro era equiparado a polícia e podia «levantar autos por transgressão e desobediências às intimações…». Intervinha junto dos utilizadores da estrada, fossem motorizados ou de tração animal, mas também sobre os donos dos terrenos que punham em causa a valetas ou mesmo a via pública.

Trabalhavam à chuva ou ao sol e «durante as horas de descanso e refeição não podiam ausentar-se…», percebendo-se que algum deste desempenho, nalguns casos, tinha como agente estimulante o álcool.

Por vezes eram alvo de chacota e na aldeia contavam-se anedotas nada abonatórias, entre as quais uma conversa entre o cantoneiro e um burro, apanhado em flagrante a lançar dejetos na via pública, que se deslocava sozinho ao contrário do primeiro, e que, em tom ameaçador, jurava por Deus que o iria multar. Mas o jumento assustado com tantos impropérios aumentou a velocidade de tal forma que o cantoneiro não mais o viu e sem o identificar, lá ficou por multar, e as botas por limpar.

A profissão de cantoneiro estava condenada a desaparecer com a chegada dos “outsourcing” e outros contratos de prestação de serviços muito mais rentáveis… Contudo, corremos o risco de só termos passeios e valetas limpas no final de cada verão, sendo obrigados a circular no alcatrão e tropeçar nos buracos por tapar. Em contrapartida, o “outsourcing”, ou contratos de prestação ou empreitadas, enche-nos de flores, corta-nos as árvores e tem um interesse particular na arte em rotundas.

Por: João Santiago Correia

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