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O Mandato

Tem sido muito discutida a questão da legitimidade do governo. Muitos dizem que o clamor das ruas e da sociedade civil, a crescente e evidente impopularidade do governo e o manifesto fracasso das suas políticas tornam evidente que os portugueses já não o querem. Dizem outros que tem “toda a legitimidade” para cumprir o seu mandato de quatro anos, que numa democracia representativa a eleição é o acto que confere a legitimidade ao governo e que só em circunstâncias excepcionais pode esse mandato cessar antes do tempo.

Interessa-me, como jurista, o alcance neste caso do conceito de mandato. No direito civil, o contrato de mandato é aquele pelo qual uma parte se compromete a realizar por conta de outra um ou mais actos jurídicos. Este contrato pressupõe a confiança, sobretudo a do mandante no mandatário, e obriga este a cumprir os actos compreendidos no contrato celebrado, de acordo com as instruções do mandatário. No fundo, este contrato implica exactamente o contrário daquilo que tem sido entendido pelos nossos sucessivos governos: que, sendo eleitos, podem fazer o que querem durante quatro anos. Pior, que podem fazer exactamente o contrário daquilo que prometeram para obter o lugar. É como se um empreiteiro contratado para fazer uma ponte em quatro anos decidisse em vez disso construir, no mesmo prazo, um estádio de futebol. Ou, pior ainda, se decidisse, em vez de construir a ponte Vasco da Gama, destruir a ponte 25 de Abril – e isso fosse normal.

Passos Coelho foi eleito para oferecer ao país uma política alternativa, e oposta, à política de austeridade proposta por Sócrates nos sucessivos PEC, dos quais o PEC 4 foi a gota a fazer transbordar o copo. Ninguém lhe conhecia quaisquer qualidades especiais e nada mais permitiu a sua eleição do que o cansaço do Sócrates e a esperança no fim da austeridade. Se ele tivesse dito que iria fazer ainda mais do que o governo anterior, que iria subir impostos para além do limite do suportável, despedir funcionários públicos, penalizar reformados, eliminar serviços públicos, diminuir prestações sociais, se tivesse avisado que iria fazer isso, acredita alguém que viria a ser eleito?

Claro que não. Não somos assim tão burros, pois não? Inteligência à parte, e não elaboremos muito sobre isso, ou terei de insultar muito mais gente do que a inicialmente prevista, parece óbvio que fomos levados à certa. Se este fosse um contrato normal poderíamos livremente resolvê-lo, por incumprimento grosseiro e reiterado do nosso mandatário, mas não é um contrato normal. Só pode sê-lo se o presidente da República entender que esse incumprimento ameaça o regular funcionamento das instituições.

Há alturas em que acredito que daria muito jeito termos um presidente da República.

Por: António Ferreira

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