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O mal absoluto

Theatrum Mundi

A partir de Setembro de 2001, tornou-se mais fácil compreender de que maneira o americano médio acredita viver numa democracia perfeita, a única capaz de dar forma, por inspiração da Providência, a uma comunidade completa que é o único garante de segurança frente às ameaças de um mundo anárquico e perigoso por natureza. Por isso, quando na semana passada o antigo presidente Carter declarou que o fiasco das últimas eleições presidenciais na Florida se podia repetir este ano, pouca ou nenhuma atenção conseguiu atrair sobre si. Carter é uma das maiores autoridades mundiais em eleições e todos os anos segue, através do seu observatório político, toda uma série de processos eleitorais em países em consolidação democrática. É claro que, se por definição, a democracia americana é perfeita, ela encontra-se mais do que consolidada e os problemas de há quatro anos resumem-se aos delírios de quem não tem mais que fazer senão ir ao cinema para ver pseudodocumentários de indivíduos lunáticos e pouco patriotas da estirpe de Michael Moore… Todas as garantias foram dadas pelo governador da Florida, Jeff Bush, e todos ficámos muito mais descansados, os americanos e os outros que não votam mas que gostariam de poder votar.

As eleições presidenciais americanas são já no início do próximo mês de Novembro e, quatro anos depois das dramáticas eleições de 2000, muitos pensariam que, desta vez, os americanos não iriam ter dúvidas e acabariam por se decidir por um novo JFK, progressista da Nova Inglaterra, que conhece o mundo e fala francês. E no entanto… Quatro anos volvidos sobre essas eleições, passou a ser comum dizer-se que o mundo mudou. E passou a ser tão comum que, no ponto em que nos encontramos, já é impossível perceber se o mundo realmente mudou ou se o que mudou foi apenas o discurso dominante sobre o mundo, à força de tanto insistir em que o mundo mudou… Partindo do princípio de que o mundo não é mais do que discurso, parece que tudo vai finalmente dar ao mesmo, o que não torna menos necessário perceber o que se esconde por detrás das insistentes vozes que tornam a mudança um facto tão assinalável.

Não quero aqui recuperar uma ou outra forma de dietrismo – de que existe qualquer coisa por detrás do que nos é dado ver – e que sempre afecta a percepção do que são as reais motivações do poder de uma grande potência como os Estados Unidos. O que é certo, é que para lá dos interesses e da agenda dos neoconservadores, o discurso de G W Bush apela a um entendimento do mundo que o americano médio compreende e que responde, desde antes da independência de 1776, às suas mais íntimas aspirações ao nível religioso/político. A nação é a comunidade completa, política e religiosa ao mesmo tempo, a rocha a que se agarram todos aqueles que almejam a salvação num mundo em que o mal absoluto prevalece. A luta contra o mal não tem fim, pois a virtude está na obstinação e na própria luta. Para lá dos muros da comunidade completa, só há mal absoluto, e o mundo divide-se entre os virtuosos que enfrentam o mal e os fracos que sucumbem a ele, sem lutar. Se Bush ganhar as eleições, será tudo menos por obra do acaso.

Por: Marcos Farias Ferreira

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