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O homem invisível

Se, como disse Fernando Pessoa, “morrer é só não ser visto”, J.D. Salinger já teria morrido há muito tempo. Afinal, morreu agora, aos 91 anos, naquela idade em que se pode sonhar o nada ou o tudo. Este homem invisível fez do seu desaparecimento uma defesa, uma salvaguarda, uma salvação. E, também nisso, sabia que a melhor defesa é o ataque. Nunca deixou que a sua invisibilidade fosse falseada por si ou atraiçoada pelos outros. Aqueles que o tentaram (familiares, vizinhos, colegas) sentiram a sua mão violenta erguer-se para os pôr à distância.

Este “Greta Garbo das Letras”, que “se tornou famoso por não querer ser famoso”, dissera um dia: “Vou dar uma opinião que se arrisca a parecer suspeita: o anonimato, a obscuridade, ou, se preferirem, a obscuridade do anonimato constitui para um escritor a reserva mais preciosa que é conferida à sua guarda durante os seus anos produtivos.” Pouco a pouco, fez desta convicção uma ascese: mesmo a publicação de um livro lhe parecia uma agressão à sua privacidade. Escrevia “apenas para ter prazer”.

Mas, antes deste onanismo, houve a fase da sedução. Foi o livro “The Catcher in the Rye” (título traduzido em português de dois modos: “Uma Agulha no Palheiro”, por João Palma-Ferreira, e “À Espera no Centeio”, por José Lima) que lhe deu uma celebridade logo rejeitada. Para a rejeitar, até mudou de casa, de lugar e de mundo: passou da cidade para o campo, de Nova Iorque para New Hampshire. Aí viveu seis décadas de reserva, de recusa, de retiro.

Quem leu, em “Uma Agulha no Palheiro”, passagens como esta, não as esquece: “Mas o que mais me chateou foi uma tipa sentada ao meu lado, que chorou durante o filme todo. Quanto mais estúpido era o filme mais ela chorava. Talvez vocês pensem que ela chorava porque tinha bom coração, mas eu, que estava sentado ao lado dela, digo-vos que não era esse o motivo.”

O romance vendeu, desde a sua publicação em 1951, mais de 60 milhões de exemplares. E continua a vender 250 mil em cada ano que passa. Isto deu ao seu autor a liberdade de viver como quis. Se me lembrar do que senti quando li este livro cheio de voz, sei bem a razão que tem levado tantos a lerem-no com o mesmo encanto inquieto. Naquela mistura de inocência e perversidade, alguns vêem os grandes afluentes que se encontram para dar caudal ao rio da vida. Outros pensam que, no coração do livro, pulsa o medo que tem Holden Caulfield de se tornar adulto. Isto é, responsável. Tudo isso lá está – e muito mais do que isso. Também lá está aquilo que cada geração nele vai descobrindo. Mas não culpem Salinger pelo assassinato de John Lennon apenas porque o assassino, no momento em que o matou, tinha na mão o livro, dizendo depois que estava nessas páginas a explicação para o ter morto. Este tipo de assassino não gosta de olhar o que faz. Recusa ver o sangue que derramou no chão. Prefere fitar as paredes e deixar que a sua brancura lhe invada os olhos de uma inocência suja. Não tenhamos ilusões: mesmo sem Wagner, Hitler teria morto os judeus, os ciganos e os homossexuais que matou.

J.D. Salinger estreou-se no magazine “Story”, onde também começaram Truman Capote, Tennessee Williams e Norman Mailer. Mas foi, seis anos e uma guerra depois, quando publicou contos em “The New Yorker” que foi notado. O escritor espanhol Antonio Muñoz Molina reconhece no estilo de Salinger o “estilo New Yorker”: “A preferência pelo laconismo em vez da abundância, pela ironia em lugar da gravidade, por situar as suas histórias em ambientes de classe média cultivada, que se parecia muito com o público leitor da revista, são marcas de estilo que estão nos contos de Salinger, como estão nos de John Updike e John Cheever.”

“The New Yorker” tinha feito seu o lema do arquitecto Mies van der Rohe: “Less is more” (“Menos é mais”). É claro que, mais tarde, Cheever acabou por desobedecer à secura do “estilo New Yorker” e deu-se a um magnífico excesso. Nessa altura, e com quatro livros publicados, Salinger já havia escolhido o silêncio – a partir de 1965, se escreveu alguma coisa, não editou mais nada.

Do pouco que se sabe dos seus dias e da maneira como os vivia, podemos adivinhar que Salinger concordava com Updike quando este afirmou que o importante na vida é a arte, o sexo e a religião. Foram também estas as suas preocupações, as suas obsessões, as suas alucinações. Viveu sob elas como debaixo de uma noite sem luz.

A partir da celebridade alcançada por “Uma Agulha no Palheiro”, J.D. Salinger proibiu que a sua fotografia aparecesse nas edições que se seguiram. Essa invisibilidade desejada e construída, se obedeceu a uma psicologia, tornou-se uma ética – acusa aqueles que se dão em espectáculo, porque, de tão nulos, nem têm consciência da nulidade que ostentam. Neste tempo de exibicionismos literários e de fraudes culturais, em que a falta de imaginação se disfarça com o excesso de imagem, olho para a invisibilidade de Salinger como para um arco mantido de pé no meio de um palácio em ruínas.

Por: José Manuel dos Santos

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