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O harmónio

Há espelhos que se aproximam de nós e trazem-nos as pessoas que fomos. Vejo-me a ver-me naquele vidro. Nestes dias desses dias, levavam-me à Baixa e às suas montras. Lá vou eu, pequeno e inquieto, com a mão esquerda na mão direita do meu pai, com a mão direita na mão esquerda da minha mãe. De repente, paro numa montra. Primeiro, olho-me; depois, olho. Aponto o brinquedo e exclamo: “Quero!” A minha mãe tenta distrair-me para que o meu pai o compre sem eu perceber, fazendo dele o presente que aparecerá na chaminé uns dias depois. Mas o mundo é vontade e representação – e há uma vez em que aponto um harmónio cheio de cores. Enquanto os meus ouvidos escutam um claro e firme “não!” da minha mãe, o olhar a que chamo meu é desviado para outra montra e para outro brinquedo que, por retaliação, desprezo. Então, sem que eu dê por isso, o meu pai vai ao balcão e compra a prenda tão desejada por mim. Depois, com Fellini por companhia, apanhamos o eléctrico, comigo a exigir o harmónio que suponho estar na loja. Essa exigência cresce e grita, transformando-se numa fúria cega e rouca contra o mundo, de tal forma violenta que os passageiros tomam partido, dividindo-se entre os que murmuram uma infinita pena de mim e os que vociferam um interminável lamento pelos meus pais.

No meio de uma batalha tão ruidosa, travada num país tão silencioso, o meu pai rende-se e faz do papel de seda a bandeira branca dessa rendição incondicional. Ali mesmo, e com instantâneo instinto, antecipa-se e antecipa-me, tornando-se no outro Pai que do Natal usa o nome. Desembrulha o harmónio e dá-mo como se mo tirasse. A fera em que eu me transformara apenas se aquieta quando o barulho da birra dá lugar a um ruído enorme e vingativo: o dos sons tirados, com aplicação, deleite e sadismo, do instrumento musical que acabava de me cair nas mãos. Nesse momento, como que por milagre, a separação cessa: os passageiros divididos entre mim e os meus pais unem-se, fundindo as suas vozes numa só – a que declara, peremptória e enérgica, que, ou eu termino de imediato o concerto, ou serei expulso do eléctrico, iniciando, à força, uma carreira de músico ambulante pelas ruas ermas da cidade hostil. Olho-os sem os olhar e digo-lhes sem lhes dizer: compreendi-vos!, assim o afirmara um dia, numa varanda de Argel, o general De Gaulle à multidão enfurecida que o escutava. Logo que o disse, prolongou-se um silêncio, que rodava sobre os carris, paralelo ao meu medo. Vem desse instante longínquo e, ao mesmo tempo, presente a minha desconfiança das multidões e da sua inclinação para a unanimidade exterminadora. Quando, muitos anos depois, li o livro de Elias Canetti Massa e Poder, pensei que ele o tinha escrito para me ajudar a perceber aquele momento…

Há espelhos que vêem até nós, com as imagens que outrora reflectiram. Eu estou num deles, nestes dias de Natal daqueles dias distantes, a olhar o harmónio que um Mozart aniquilado pela multidão ululante nunca mais abriu, nem sequer para ver as suas cores brilhantes. Abro-o, hoje. E toco nele a música que não sei tocar, mas que tenho passado a vida a ouvir.

Por: José Manuel dos Santos

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