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O galo

D. Carlos gostava de histórias e do exemplo que são. Esta contava-a ele e, depois, contava-se dele. O rei fora visitar um manicómio. À hora marcada, chegou gordo, louro e solene. Estavam a recebê-lo ministros e médicos. Os loucos olhavam-no à distância, muitos deles não percebendo sequer quem era aquele que viam. Até que, quando cumprimentava e fazia perguntas, se chegou junto dele um doente que tinha conseguido furar o cordão que protegia o monarca. Era um homem de meia-idade.

Dirigiu-se ao rei com modos reverentes (fez uma vénia) e palavras respeitosas (Majestade, Meu Senhor), pedindo compreensão e clemência. Contou que estava preso naquele hospício por uma escura maquinação da família, que assim lhe tinha ficado com os bens e lhe gastava a fortuna. Fixou D. Carlos com os olhos serenos e sinceros, exclamando: “Eu não estou louco! Sou um homem são e só Vossa Majestade me pode salvar, ordenando que se faça justiça.”

O rei impressionou-se com o que viu e ouviu. Naquele homem, na sua expressão e na sua atitude, na sua fala e no seu proceder, não havia nada que levantasse suspeita ou denunciasse excesso ou delírio. Tudo o que ele dizia tinha uma lógica forte e parecia provir de uma razão clara. Mas D. Carlos quis ser prudente, sabendo que é preciso dar a uma primeira impressão a oportunidade de se confirmar. Por isso, ordenou ao reclamante que o acompanhasse, criando ocasiões de conversa e de avaliação.

A visita iniciou-se, e o rei, nesse dia, parecia muito atento, curioso e comunicativo. Deixava reparos e pedia informações acerca do que via. Fazia perguntas sobre doenças e doentes. Com vagar e interesse, percorria enfermarias e salas de tratamento, ouvia explicações, necessidades e lamentos. Pelo meio, sempre que podia, interrogava o homem que lhe pedira justiça e obtinha dele comentários ajuizados. Havia já um incómodo entre os médicos, causado pela demonstração de que, afinal, aquele louco era tão ou mais normal do que qualquer deles. E essa evidência sustentava a tese da conspiração familiar.

D. Carlos prosseguia a visita, dividido entre a preocupação com uma gritante injustiça e o divertimento pela perplexidade gerada. Mas os reis, ainda antes de serem justos, devem ser prudentes até ao fim – e aquele não quis faltar a esse dever da realeza. Assim, continuou a fazer perguntas ao homem. Agora, já não o interrogava sobre o manicómio e a vida nele. Inquiria-o também sobre a família malvada e a cabala por ela montada para o interditar e desapossar. Perguntava mesmo sobre o país e a política. O homem respondia com eloquência e discernimento. Via-se que, mesmo encerrado no hospital, conhecia o que se passava lá fora e tinha sobre isso ideias sensatas e opiniões avisadas.

O soberano continuava a caminhar e já falava com o homem não apenas para o experimentar mas também para tirar prazer e proveito do que ouvia. Em redor, os ministros e os médicos, comprometidos, guardavam circunspecção e silêncio. O rei, que gostava de exibir aos outros a sua condição e a superioridade que ela lhe dava, falava alto e louvava o seu interlocutor. Este sorria e trocara mesmo a reverência inicial com que se apresentara a ele por uma familiaridade cortês. Quem olhasse aquele cortejo que deslizava pelos corredores brancos do manicómio via, à frente, D. Carlos de Bragança Sabóia Bourbon e Saxe Coburgo-Gota, rei de Portugal pela graça de Deus, a conversar com um louco que negava sê-lo. Atrás, a uma respeitosa distância, vinham os ministros e os médicos, mudos e apreensivos com o que se passava.

A visita estava a chegar ao fim, e o monarca ia iniciar as despedidas. Certo agora, de uma certeza sem dúvida, de estar em face de um homem normal, vítima de uma conspiração iníqua que o encarcerara, D. Carlos preparava-se para lhe dizer que, mal saísse dali, trataria do caso, mandando que justiça se fizesse e ele fosse posto em liberdade. Mas, antes que assim dissesse, o homem olhou-o e clamou: “Contei muitas coisas de mim e da minha vida a Vossa Majestade. Mas há uma coisa que ainda não contei: é que eu sou um galo.” Ao dizer isto, agitou os braços como se fossem asas e, num brado que se ouviu em todo o manicómio, cantou três vezes: “Cocorococó! Cocorococó! Cocorococó!” O rei, estupefacto, compreendeu imediatamente e gritou-lhe: “Cantaste a tempo!”

Esta história, tão imprevista, serve para nos dizer que, quando alguém canta a tempo, havemos de saber ouvir o seu canto e tirar as conclusões. Agora, que, na política, há tanta gente a cantar a tempo, eu penso nela como numa lição…

Por: José Manuel dos Santos

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