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O Exame

As opiniões dividem-se sobre a prestação televisiva de José Sócrates acerca do seu currículo académico. Há quem ache que ele passou no exame dificílimo que o esperava, há quem ache que ficou na fronteira entre o chumbo e a aprovação, e há quem ache que não foi capaz de afastar as muitas suspeitas acumuladas ao longo das duas últimas semanas.

Penso que é difícil ter uma opinião clara. Se aceitarmos que Sócrates enfrentava um desafio duplo – político e pessoal -, talvez a conclusão possa ser a de que passou politicamente, mas não afastou todas as dúvidas em termos pessoais e de imagem. No campo político, acabou por retirar vantagem de só ter falado depois de ver todo o fogo de barragem que lhe era dirigido. Foi inteligente ao apresentar-se como alguém que tinha frequentado durante sete anos e meio o ensino superior, que se procurou valorizar já em adulto e que viu o seu esforço posto em causa e arrasado por esse instrumento de calúnia e impunidade sem igual que é a blogosfera. E foi inteligente ainda ao reconhecer que, todavia, havia quem pudesse ter dúvidas legítimas, a que lhe cabia responder. Penso que ele intuiu também que o país não aprecia o espectáculo de um primeiro-ministro a ter de se humilhar para esclarecer o seu passado universitário e que valoriza sim outras coisas, mais imediatas e mais comezinhas. A menos que desenterre mais um desses papéis inexplicáveis (ou a menos que toda a história da Universidade Independente seja escrutinada de fio a pavio), creio que Sócrates pode ter matado politicamente o assunto na quarta-feira passada.

Resta o lado pessoal, onde, em minha opinião, Sócrates não foi convincente. Começando logo pela primeira pergunta: porque é que um aluno que vem do sector público escolhe a Universidade Independente para concluir a licenciatura? Sócrates deu três razões e nenhuma delas pertinente: a proximidade física com o ISEL não faz sentido (se se mudou de uma para a outra, que lhe interessava que fossem próximas?); o facto de ter horário pós-laboral acontece com todas as outras Universidades, públicas ou privadas; e o “prestígio” de que gozaria a UnI, só mesmo, e como está bem à vista, nos melhores sonhos do aluno José Sócrates. Pelo contrário: se a sua intenção era “valorizar-se”, como disse, não se percebe porque escolheu uma Universidade cujo curso de Engenharia não é reconhecido pela Ordem dos Engenheiros e que apenas o habilitaria a fazer-se tratar, e indevidamente, por engenheiro e não a exercer a profissão para a qual é suposto ter-se valorizado na Universidade.

Depois, houve outras coisas que ficaram por explicar ou cuja explicação não pode convencer quem sabe do que se trata. Nenhum aluno que tenha feito um curso ‘a sério’ numa Universidade ‘a sério’ teve, no ano de licenciatura, cinco cadeiras, das quais quatro dadas pelo mesmo professor; nenhum aluno se esqueceria do nome dos professores, para mais se só teve dois; nenhum aluno acreditaria que era possível ser membro do Governo e simultaneamente concluir uma licenciatura com aulas nocturnas e fazendo o ano com média de 17; nenhum aluno viu um professor dar-lhe as notas durante as férias de Agosto, e logo quatro no mesmo dia; nenhum aluno tem um certificado de curso passado durante as férias, num domingo, e assinado pelo reitor e pela filha, na qualidade de directora administrativa (típico de Universidade de vão de escada). A isto, basicamente, José Sócrates respondeu que são questões a que é alheio e cuja responsabilidade só pode ser imputada à Universidade. Mas há uma coisa a que ele não foi alheio, que foi a escolha desta Universidade para se licenciar. E, aqui, volta a questão política: eu sei que houve inspecções regulares à UnI e que em nenhuma se sugeriu o seu encerramento. Mas, por tudo o que hoje sabemos sobre o seu funcionamento, os seus responsáveis e as suas estranhas e constantes anomalias processuais (até chegaram a dizer que só guardavam os registos dos alunos durante cinco anos…), a questão está em saber, exactamente, se ela não deveria ter sido encerrada muito antes. Será que José Sócrates, primeiro-ministro, recomenda o modelo da UnI que o aluno José Sócrates conheceu como exemplo a seguir na tal estratégia de qualificação e valorização profissional que defende para o país?

Mas, finalmente, que importância tem isto, pergunta-se. Que o primeiro-ministro seja engenheiro ou não, não tem importância alguma e não diminui, certamente, os muitos méritos que a governação de Sócrates já demonstrou. Mas não é tudo reduzível a uma questão de “luta de classes”, como já vi escrito. Não é o “snobismo” dos engenheiros e doutores a defenderem o seu território sagrado contra a democratização dos títulos académicos. Um título académico é também um instrumento de habilitação profissional num mercado de trabalho concorrencial e onde, obviamente, a concorrência é desleal se uns se desunham para obter os seus e outros os obtêm através de passagens administrativas, “exames colectivos” ou Universidades mexerucas. Por isso, a última questão a que José Sócrates não respondeu, nem lhe foi perguntada, é esta: se, como afirmou, nunca pensou em ser engenheiro, para que quis licenciar-se em Engenharia? Uma curiosidade intelectual por conhecer as vigas de betão esforçado?

P.S. – Um recente acórdão de um tribunal superior americano estabeleceu que a liberdade de expressão dos jornalistas implica o direito a poder errar. Desde que se actue de boa-fé e se reponha, por desmentido, a verdade, o erro faz parte dos riscos inerentes à actividade jornalística, assim como o erro médico, não culpável, faz parte da medicina.

Em Portugal, um recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acaba de consagrar uma doutrina que nem sequer é a oposta, é bem pior do que isso: uma notícia, mesmo que verdadeira e provada, não isenta um jornalista da responsabilidade pelos danos que ela possa causar a outrem. O jornal ‘Público’ noticiou que o Sporting devia 480 mil euros ao Fisco. A notícia era de interesse público, não só porque há a desconfiança de que os clubes não pagam ao Fisco como ainda porque o Sporting vivia a gabar-se de ser a excepção na matéria. Mas o clube entendeu processar o jornal, por “ofensas ao seu bom nome”. Em primeira e em segunda instância, provou-se que a notícia era verdadeira, mas, em recurso final para o Supremo, o Sporting obteve ganho de causa, graças à extraordinária doutrina de que “com a verdade me ofendes”. Aconteceu-me também uma vez ser julgado por, num programa de televisão de que era responsável, se ter dito que o indivíduo Tal fora condenado por vários crimes de homicídio. E fora. Mas o Ministério Público, felizmente sem vencimento na sentença, entendeu que o criminoso era eu, porque tinha ofendido “o bom nome” do outro. Como se vê, para os nossos tribunais e para a nossa lei, o “bom nome” não é um conceito objectivo, mas sim subjectivo e universal: não tem só direito à protecção ao bom nome quem paga impostos e não comete crimes, mas sim qualquer um, independentemente do que faça. Não é difícil adivinhar onde é que esta chocante inversão de valores nos pode levar: à censura, absoluta e total, sobre a Imprensa.

Por: Miguel Sousa Tavares

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