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O eterno marido, Fiódor DOSTOIÉVSKI

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Neste livro, publicado pela primeira vez em revista no ano de 1870, o autor de obras como Crime e castigo e O Jogador põe o seu talento ao serviço de um público desde já habituado às subtilezas da sua prosa e à mestria da análise da alma humana que, tal um precursor de Freud, soube tão justamente descrever.

Apesar de um arranque, ao meu ver, um pouco moroso dadas as longas descrições (é dedicado um capítulo inteiro à apresentação da personagem principal), o desenrolar da história de O eterno marido revela-se em seguida bastante envolvente.

Veltchanínov é um solteirão hipocondríaco que, já perto dos 40 anos e depois de levar uma vida de bon vivant e de convívio com a alta sociedade se retira, atormentado por obsessivas incertezas relativas à sua existência e por ataques de consciência avassaladores. Hospedado em Petersburgo para resolver um processo litigioso referente a uma herdade, cruza-se por várias vezes com um desconhecido que lhe desperta a atenção, até que uma abordagem mais ousada lhe permite saber que se trata do marido de uma amante que tivera nove anos atrás e que falecera entretanto.

O primeiro frente a frente abre caminho a vários outros encontros que, por casualidade ou por vontade própria de ambas as personagens, vão ser o palco das mais estranhas conversas e dos mais controversos sentimentos. Com efeito, Veltchanínov passa a viver na incerteza quanto aos motivos que trouxeram até ele Pável Pavlovitch: tratar-se-á de um ajuste de contas por parte de um marido ciumento que descobriu a infidelidade da falecida esposa, ou será mesmo que o sujeito ignora tal episódio? O certo é que Pável Pavlovitch surge como um homem de múltiplas facetas, sendo a sua postura mais frequente a de um ser maquiavélico, de um monstro que invade a vida do protagonista para a não mais deixar. Não obstante esse lado pérfido e escuro da sua personalidade, a personagem é-nos mostrada contraditoriamente como um ser passivo, cobarde e fraco, pelo que Pável Pavlovitch se torna constantemente o actor de cenas ridículas e burlescas. É-de referir por exemplo o episódio campestre particularmente divertido em que, tal uma marioneta nas mãos de uma dezena de jovens raparigas, é manipulado, gozado e completamente humilhado. Por ser supostamente a mais inocente, a mais nova das irmãs é cortejada por Pável Pavlovitch que veio propositadamente com pretensões de contratar um futuro matrimónio; mas o resultado é, como se pode antecipar, o ódio e a malvadez da jovem rapariga para com o seu pretendente.

Essa busca incansável e desajeitada da felicidade absoluta por parte de uma personagem insegura, que toma como modelo de nobreza e de virilidade o próprio amante da sua mulher, não poderia desembocar senão numa atitude criminosa falhada. Pável Pavlovitch está definitivamente condenado à condição de “eterno marido”, sendo apenas esse o objectivo que pretende alcançar na sua vida, embora para tal se sujeite ao sofrimento e a uma passiva resignação.

Nesta obra, Dostoiévski oferece-nos uma deslumbrante pintura de sentimentos e descreve com destreza o sofrimento psíquico das suas personagens; sentimentos esses levados ao limite da sanidade mental, precipitando por vezes os protagonistas para a beira de uma loucura que se traduz pelos delírios e pelos esmagadores conflitos interiores com os quais se debatem.

Por: Amália Fonseca

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