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“O espantoso esplendor do mundo” em Sophia de Mello Breyner (1919-2004)

I. Para muitos de nós, houve decerto uma tarde em que o céu se estendia sobre a lassidão dos nossos pensamentos, daí emergindo uma espécie de irreversível fantasia, ora doce, ora ameaçadora, um reflexo possível daquele azul pálido, com pequenas nuvens alvas voando à superfície, através das copas desfolhadas das árvores em redor. Como seria estranha essa indizível estranheza! As palavras combinariam com um arruinado templo de Delfos, povoado de deuses solícitos ou punitivos, talvez um calafrio nos percorresse até à ponta dos dedos, os pensamentos erguendo-se desordenadamente, como bolhas de água fervendo: “existia, portanto, algo com que sempre se teria de contar, algo de que se precaver, algo que subitamente pode saltar fora dos calados espelhos dos nossos pensamentos”, ou ” será possível que, naquela tarde de luz, no meio do que antes parecia nítido, se abrisse uma porta levando a outro mundo, imprevisível, desnudado, devastador? Será possível que entre uma transparente e firme casa de vidro e ferro e uma outra, onde se deambula por confusos corredores repletos de vozes, não exista apenas uma passagem, mas que as suas fronteiras se toquem, secretas, próximas, podendo ser ultrapassadas a qualquer momento?”. E, ainda assim, as palavras, essas palavras, em sobressalto, estendidas eternamente por milhares de sinuosidades, como uma escada sem fim e sem objectivo…

II. Sophia nasceu no Porto, no seio de uma família aristocrática, e aí viveu até aos dez anos, altura em que se mudou para Lisboa. De origem dinamarquesa por parte do pai, a sua educação decorreu num ambiente católico e culturalmente privilegiado que influenciou a sua personalidade. Frequentou o curso de Filologia Clássica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em consonância com o seu fascínio pelo mundo grego (que a levou igualmente a viajar pela Grécia e por toda a região mediterrânica), não tendo, todavia, chegado a conclui-lo. Teve uma intervenção política empenhada, opondo-se ao regime salazarista (foi co-fundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos) e também, após o 25 de Abril, como deputada. Presidiu ao Centro Nacional de Cultura e à Assembleia-geral da Associação Portuguesa de Escritores.

O ambiente da sua infância reflecte-se em imagens e ambientes presentes na sua obra, sobretudo nos livros para crianças. Os verões passados na praia da Granja e os jardins da casa da família ressurgem em evocações do mar ou de espaços de paz e amplitude. A civilização grega é igualmente uma presença recorrente nos versos de Sophia, através da sua crença profunda na união entre os deuses e a natureza, tal como outra dimensão da religiosidade, provinda da tradição bíblica e cristã.

A sua actividade literária (e política) pautou-se sempre pelas ideias de justiça, liberdade e integridade moral. A depuração, o equilíbrio e a limpidez da linguagem poética, a presença constante da Natureza, a atenção permanente aos problemas e à tragicidade da vida humana são reflexos de uma formação clássica. Colaborou nas revistas Cadernos de Poesia (1940), Távola Redonda (1950) e Árvore (1951) e conviveu com nomes da literatura, como Miguel Torga, Ruy Cinatti e Jorge de Sena. Na lírica, estreou-se com Poesia (1944), a que se seguiram Dia do Mar (1947), Coral (1950), No Tempo Dividido (1954), Mar Novo (1958), O Cristo Cigano (1961), Livro Sexto (1962, Grande Prémio de Poesia da S.P.E.), Geografia (1967), Dual (1972), O Nome das Coisas (1977, Prémio Teixeira de Pascoaes), Navegações (1977-82) e Ilhas (1989). Este último voltou a ser publicado em 1996, numa edição de poemas escolhidos acompanhada de fotografias de Daniel Blaufuks. Em 1968, foi publicada uma Antologia e, entre 1990 e 1992, surgiram três volumes da sua Obra Poética. Seguiram-se os títulos Musa (1994) e O Búzio de Cós (1997).

Em prosa, escreveu O Rapaz de Bronze (1956), Contos Exemplares (1962), Histórias da Terra e do Mar (1984) e os contos infantis A Fada Oriana (1958), A Menina do Mar (1958), Noite de Natal (1959), O Cavaleiro da Dinamarca (1964) e A Floresta (1968). É ainda autora dos ensaios Cecília Meireles (1958), Poesia e Realidade (1960) e O Nu na Antiguidade Clássica (1975), para além de trabalhos de tradução de Dante, Shakespeare e Eurípedes.

A sua obra literária encontra-se parcialmente traduzida em França, Itália e nos Estados Unidos da América. Em 1994 recebeu o Prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores e, no ano seguinte, o Prémio Petrarca, da Associação de Editores Italianos. O seu valor, como poetisa e figura da cultura portuguesa, foi também reconhecido através da atribuição do Prémio Camões, em 1999. Em 2001, foi distinguida com o Prémio Max Jacob de Poesia, num ano em que o prémio foi excepcionalmente alargado a poetas de língua estrangeira.

Em Agosto do mesmo ano, foi lançada a antologia poética Mar. Em Outubro publicou o livro O Colar. Em Dezembro, saiu a obra poética Orpheu e Eurydice, onde o orphismo está, mais uma vez, presente, bem como o amor entre Orpheu, símbolo dos poetas, e Eurídice, que a autora recupera num sentido diverso do instaurado pela tradição helénica.

III. Sophia, incansavelmente, chamou-nos ao local onde, entre as nuvens, luz uma nesga de azul, indizivelmente profunda:

“À sua passagem a noite é vermelha,/ E a vida que temos parece/ Exausta, inútil, alheia./ Ninguém sabe onde vai nem donde vem,/ Mas o eco dos seus passos/ Enche o ar de caminhos e de espaços/ E acorda as ruas mortas./ Então o mistério das coisas estremece/ E o desconhecido cresce/ Como uma flor vermelha.

E com ela o mundo é menos uma casa desabitada e sombria, porque só os verdadeiros poetas nele inscrevem um enigma insolúvel e uma inexplicável coerência:

“Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do amor e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo. Aquele que vê o fenómeno quer ver todo o fenómeno. É apenas uma questão de atenção, de sequência e de rigor…”.

Por: António Godinho *

* Poeta

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