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O desgosto

“– Sei, desde há muito, que uma onça de inércia pesa muito mais do que um alqueire de saber – disse Zenão, irritado.”

Marguerite Yourcenar em “A Obra ao Negro”

Depois de ler o meu último artigo, um amigo telefonou-me, assustado, não com o inevitável fim do mundo anunciado, mas com o meu tenebroso estado de espírito.

– Isso é um pedido de socorro! – disse ele. – O que é que lhe aconteceu, desta vez?

– Como é que descobriste?

– Bastou-me ler!

– Estava um bocado amargo, não é?

– Amaríssimo!

– Eu sei. – respondi. Mas não deixa de ser verdade. – defendi-me. – A glaciação vai mesmo acontecer, quer tu queiras, quer não.

– Está bem, mas ainda falta muito tempo. Não há necessidade de andar por aí a meter medo às pessoas. Agora o que me afligiu, mesmo, foi a sensação de impotência que transmite. O que é que se passa, afinal? Não foram só os incêndios, pois não?

À conversa sobre o personalíssimo desgosto subjacente à acerbidade jornalística da semana anterior, seguiu-se o envio de uma tonelada de e-mails com palavras de consolo, opinações e citações, de que destaco a que introduz esta crónica, e a seguinte, da mesma autora e obra:

“ Zenão foi passear e deixou-se dormir no campo; ao acordar observou o seu olho que se reflectia através de uma espécie de placa formada pela areia e erva. Acabava de se ter visto a ver-se! Fugindo à rotina das habituais perspectivas, contemplava de perto o órgão, pequeno e enorme (…) do qual dependia para ver o Universo. (…) O importante seria o que ele pudesse filtrar do mundo antes de tudo escurecer, controlar o que testemunhasse e, se possível, corrigir-lhe os erros.”

Comovida com o primaveril voluntarismo do meu jovem amigo, fui à biblioteca e peguei na Obra, com um azar tão Negro que ela se foi abrir no início do capítulo “As Últimas Viagens de Zenão” que começa assim: “ Era uma dessas épocas em que a razão humana se encontra presa num círculo de chamas”.

Desisto. Um luto é para se fazer até ao fim.

Não te preocupes, meu querido: continuarei a separar o lixo, a comprar detergentes biodegradáveis e a recusar o uso de rolos de papel na minha cozinha. A minha inércia não me permite escapar a estas trabalhosas rotinas há muito instaladas. Mas não resisti ao chão de madeira tropical… Mea culpa, minha máxima culpa.

Não é só o Bush, ou o industrial, ou o madeireiro que a detêm. Somos todos nós. Como diz o António Ferreira, na sua crónica do mesmo dia, “as pessoas arranjam culpados exteriores à comunidade para evitar fugir às suas próprias responsabilidades e manter os seus hábitos e procedimentos” (adaptação livre que espero não ofenda o espírito do autor).

E, contra isso, batatas.

Vou curtir o meu desgosto até daqui a 15 dias. Desejem-me rápidas melhoras.

Por: Maria Massena

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