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O desencanto e o recomeço

Theatrum mundi

Há momentos que têm o condão de desfazer todas as dúvidas e ilusões, que nos obrigam a olhar para trás com mais sentido crítico e sem receio de acolher o desencanto tão difícil de reconhecer para quem, como as actuais gerações, foi acostumado a ver-se a si próprio investido do privilégio dos vencedores da História. Refiro-me naturalmente ao estado a que chegámos e às ilusões que se desmoronam sobre aquilo que andámos a fazer como país nos últimos 35 anos.

Uma parte crucial do discurso político hegemónico nestes últimos 35 anos foi a apresentação, como vencedores da História, da geração que fez o 25 de Abril e mais tarde promoveu a integração de Portugal na Europa política. Lutar e vencer a ditadura, descolonizar, recentrar as prioridades e desenvolver o país, superar a dureza da negociação com a Europa e encontrar una nova missão para o país, eis as tarefas hercúleas de uma geração que buscou a todo o custo uma qualquer legitimidade do exercício do poder e adestrou novas gerações nas movimentações estratégicas da sua manutenção.

Passados 35 anos, o ponto em que nos encontramos deveria obrigar todos a questionar profundamente o projecto e a não esconder as suas enormes falhas, como se estas não passassem de dificuldades conjunturais ‘heroicamente’ ultrapassadas com corte de salários e subida de impostos. O último ano avolumou o desencanto porque descobrimos que era possível enganar, mentir e encobrir, a partir do poder, de forma irresponsável, e num grau que não pensávamos possível. No pico da crítica sobre o distanciamento entre cidadãos e classe política, pareceu opção aceitável ao partido do governo a estratégia de negar e esconder a crise, empurrando com a barriga as medidas urgentes a tomar e alimentando os equívocos perigosos que lhe permitiram manter-se no poder.

A crise não está no orçamento; ela está no desencanto de todos os dias conhecer um pouco melhor de que forma a geração que se arvorou em heroína e vencedora da História usa e abusa dos privilégios que se concedeu a si própria e aos seus amigos. Está no desencanto de perceber de que forma uma certa geração acautelou os seus interesses mais imediatos e mesquinhos e assim condenou as vindouras ao empobrecimento e à falta de oportunidades. De que forma se serviu do estado e abusou dos recursos públicos. Tudo em nome dos valores mais nobres e do serviço à comunidade. E da República. Se houver mais vida para lá do défice, vai ser dramático perceber que país restou de tudo isto e qual poderá ser o ponto de recomeço.

Por isso compreendo os que escrevem que este regime já acabou. E ele acabou porque a confiança social está a bater no fundo e a exigir um novo contrato.

Por: Marcos Farias Ferreira

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