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O Desassossego

Sinais do Tempo

O calor, os fogos, as festas, as feiras, as praias, as noites, as notícias e a ausência delas, a bola (incluindo a de “Berlim”), as esplanadas a abarrotar, os restaurantes com filas, os corpos bronzeados, a roupa mais leve, algumas conversas em francês, constituem indicadores de férias, de animação, de saudades, de bem-estar e de vida, ou seja de Verão.

Ainda me recordo de cada Verão passado na aldeia e de que forma me ajudou a crescer e a formar. Lembro-me de como íamos em grupo pelas ruas da aldeia em direcção a locais ermos, longe dos olhares curiosos fumar um cigarro e contemplar o céu, filosofando, discutindo o cosmos e os discos voadores. Eram os meninos e as meninas da cidade que retornavam à aldeia e se misturavam com os amigos que por lá ficaram. As noites de Agosto propiciavam longos debates filosóficos em que a vida e a vontade de viver estavam presentes. A política estava na ordem do dia. Os pensamentos (alguns pesquisados no dia anterior num qualquer livro) caíam na mesa tal e qual as cartas da sueca na taberna, depois discutiam-se um a um. O líder, então estudante de engenharia no “Técnico”, bem mais velho, mais pesado e letrado do que a maioria dos restantes, conduzia o debate, de fundo ouvia-se o dedilhar numa viola, habitualmente baladas “revolucionárias” ou bossa nova. Pelo meio trocavam-se olhares cúmplices, era o despontar de alguns namoricos de Verão. Ao fim de semana tínhamos os bailes com música ao vivo, onde o desejo aumentava e se consolidavam as paixões do momento. Uma noite ia a festa a meio, lançaram-se os foguetes com canas e tudo, entretanto na encosta iniciou-se um incêndio rapidamente extinto pelos populares com a ajuda do grupo, que saiu dali com a sensação do dever cumprido. Na altura ainda havia muita lavoura, burros, bois e respectivos carros. No Verão a azáfama era grande, com as batatas, o feijão e o milho. Dos pinhais já tinha sido retirado o mato, a caruma e os ramos secos, usados como material combustível e estrume. Não me lembro de grandes incêndios na altura.

A aldeia gostava de nós, da vida e da animação inerente a jovens de cabelo ao vento e nariz empinado, da possibilidade de sermos tema de conversa na mercearia ou na barbearia, pelo que tínhamos e pelo que ainda não tínhamos feito. Em finais de Setembro tudo voltaria ao habitual, nós regressávamos às aulas e a aldeia serenava. Para sempre fica a memória desses dias frenéticos, de crescimento acelerado, de conhecimento multidisciplinar, enfim um período de desassossego característico da adolescência que marca o futuro adulto.

O grupo já não se encontra enquanto tal, seguimos as nossas vidas e agora somos adultos. Vou olhando para as estrelas e continuo as minhas buscas, as minhas respostas, às minhas inquietudes. Uma das minhas netas acha que a cada estrela corresponde uma vida de alguém querido que desapareceu. Quando olho, procuro esses entes queridos, não sei se olho para as estrelas certas, pouco importa. Lá ou em qualquer sítio (mesmo que seja apenas no meu íntimo) estão aqueles que, entretanto, desapareceram e que ao longo da minha vida contribuíram para a minha criação ou para a minha formação.

Todos nós precisamos de períodos em que nos isolamos, em que buscamos o silêncio e em que contemplamos. Períodos em que nos ouvimos a nós próprios e em que criamos roturas, mesmo que passageiras.

O Sossego

Cheguei de férias e o que ouço aqui na Guarda, onde vivo, é que a cidade está calma, não há notícias dizem os jornalistas, não há animação ou festas dizem os que nos visitam, não há esplanadas a abarrotar, o calor já a diminuir e as conversas em francês a diminuir.

No pasa nada.

Por: João Santiago Correia

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