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O corporativismo, o contrato individual de trabalho e o onanismo na função pública (1)

“Eu não tenho nada contra as vírgulas, ou a falta delas, desde que sejam bem colocadas.”

em “Manual do Preciosismo”

Parece que os médicos que trabalham para o Centro Hospitalar da Cova da Beira poderão vir a ser remunerados até 20% mais, caso cumpram com determinados objectivos, nomeadamente o da prossecução de altas mais precoces.

Há uma coisa de que as pessoa se esquecem com frequência: os resultados na área da saúde dependem da actividade de uma equipa. Se o atendimento a um doente se faz segundo o estado da arte isso deve-se a muitos factores que vão do funcionamento das linhas telefónicas à celeridade das ambulâncias, passando pela competência técnica dos humanos.

Na passada semana o governo concedeu meio dia de tolerância aos trabalhadores da função pública. Fantástico.

Não contente com isso o Conselho de Administração do Hospital Sousa Martins, ofereceu mais meio dia aos seus funcionários. Fabuloso.

Resultado 1: o serviço deixou de se processar normalmente desde as 12h30m de 5ª feira às 13 h da 2ª feira seguinte; pelo meio ficaram a Sexta, o sábado e o Domingo, o que proporcionou um óptimo fim de semana prolongado a um elevado número de profissionais que, nas próximas eleições, não irão deixar de agradecer a quem de direito este acto de magnanimidade

Resultado 2: a urgência e os serviços mínimos ficaram, como sempre, assegurados por médicos, enfermeiros e outros técnicos, à custa das famosas horas extraordinárias mas, como é habitual, esqueceram-se de que há serviços de manutenção que são essenciais, ou seja, quando o electrocardiógrafo da Urgência e a rede interna de computadores avariaram… não havia ninguém para os reparar: não são pagas horas de prevenção a electricistas e engenheiros, que costumam vir resolver os problemas mesmo não estando de serviço mas que desta vez aconteceu não estarem na cidade.

No domingo à noite alguém protestou: “a Sra. Dra. agora anda com a mania de deixar análises urgentes pedidas para os domingos e feriados à noite aos doentes internados.”

Tive de explicar que não era pelos 20% a mais que ninguém me prometeu que ia tentar dar duas altas na 2ª. feira pela manhã, mas que infelizmente os doentes que permaneciam na Urgência desde 6ª feira da Paixão, à espera de ser internados, não eram sensíveis ao argumento de que estávamos num fim de semana santo e prolongado; que muitos tinham melhorado graças a Deus e ao tratamento mas que mesmo assim sobravam alguns que não eram passíveis de ser despachados para sítio nenhum, até porque os Centros de Saúde também estavam superlotados e não são obrigados a receber ninguém quando não têm vagas, sorte a deles, ao contrário de nós que não pudemos recusar doentes, quer venham da periferia ou de um hospital central e que, ainda, não me era possível mandar fechar as portas da Urgência como se fecha um serviço administrativo, mesmo que os corredores estejam cheinhos de macas e que, portanto, era minha obrigação desencantar camas nem que para isso tivesse que mandar doentes a Coimbra fazer exames que em dias normais seriam feitos cá e pedir como urgentes análises que não o eram mas que adquiriam essa qualidade pelo excepcionalidade da duração do fim de semana, e por aí fora, que em casos que tais, o essencial é a gente não perder as estribeiras e começar aos gritos, mais vale surpreender os interlocutores com um arrazoado que os deixe com os ouvidos a fumegar de cansaço e, enfim, o fim de semana passou-se e felizmente o 25 de Abril e o 1º de Maio, este ano, calham ao sábado e ao domingo embora aí não haja perigo de serem dadas tolerâncias extra, a não ser que a continuidade nos surpreenda muito.

(continua)

Por: Maria Massena

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