– Porque é que chove?
Era esta a pergunta que eu não me cansava de colocar, dia após dia.
– Não sei, filha. Vai perguntar ao pai.
Eu saía da cozinha a correr, pegava no telefone e carregava nas teclas automaticamente, quase ao acaso.
– Não tenho tempo para te explicar agora, filhota. Falamos mais tarde, está bem?
E eu esperava, mas o “mais tarde” nunca chegava.
– Mano, porque é que chove?
O meu irmão olhava para mim com aquele seu ar de jovem rebelde e incompreendido, rolava os olhos nas órbitas e virava-me costas, deixando-me sozinha com a minha curiosidade.
Nessas alturas, eu costumava meter-me debaixo dos cobertores com um coelhinho de peluche, uma velha lanterna a pilhas e um pacote de bolachas de chocolate. Gostava de imaginar que estava a chover torrencialmente. Por vezes, chegava mesmo a ouvir o som da chuva a bater na janela… Então, eu já não me encontrava na minha cama, mas sim abrigada numa gruta, perdida numa qualquer floresta.
O coelhinho agarrava-se às minhas pernas, assustado com a tempestade e o isolamento. Qual mãe protectora, eu enlaçava-o e mantinha-o junto ao meu pescoço, procurando tranquilizá-lo e aquecê-lo. Com a chuva, viera um frio angustiante, que me forçava a aconchegar-me melhor nas cobertas. Na minha fantasia, não havia nada em que me pudesse envolver, por isso, limitava-me a apertar ainda mais o coelhinho contra mim, mergulhando numa letargia assustadoramente forte.
Tudo acabava quando a minha mãe surgia, por entre as pedras nuas da gruta (ou seriam os cobertores felpudos da cama?), trazendo consigo uma chávena de leite quente. Delicadamente, retirava-me a lanterna e o peluche das mãos, sentava-se ao meu lado e puxava-me para o seu colo. Eu bebia, então, o meu leite e, a cada gole, era transportada para outros mundos, consoante a história que me chegava aos ouvidos.
Quando a minha boca já não conseguia sorver nem mais uma gota de leite, eu entregava a chávena à minha mãe e esforçava-me por olhar para ela, numa última tentativa para fugir às exigentes garras do sono.
– Porque é que chove?
O tom sonolento que eu empregava nada tinha em comum com o entusiasmo com que eu fizera aquela mesma pergunta, horas antes. Talvez por isso a minha mãe não me tivesse dado o seu habitual “não sei”. Em vez disso, acariciava-me a face e, com uma voz mais doce do que o chocolate das bolachas, respondia-me, noite após noite. No entanto, eu nunca ouvia a resposta, uma vez que, noite após noite, adormecia no instante em que da boca da minha mãe se escapava um “porque”.
Eu gostava tanto daquela rotina que não me atrevia a quebrá-la, nem mesmo para saber a resposta à minha pergunta. E, contudo, havia algo dentro de mim que dardejava, sempre que, lá fora, pequenas gotas transparentes ousavam manchar o vidro das janelas.
Um dia, depois de sair da cozinha com mais um “não sei”, não corri ao encontro do telefone, nem deixei que as minhas mãos efectuassem a ligação para o meu pai. Não procurei o meu irmão, deixando-o com a sua música insuportavelmente barulhenta. Dirigi-me ao meu quarto, trazendo um pacote de bolachas. Construí o meu abrigo real e imaginário e refugiei-me lá dentro, juntamente com o meu fiel e felpudo companheiro. Não acendi a lanterna, limitando-me a partilhar uma bolacha com o coelhinho, ao som da minha chuva inventada.
Esperei que a minha mãe aparecesse com o leite, tal como sempre fazia. Porém, parecia estar a demorar mais do que o normal. Apurei o ouvido, tentando detectar o momento em que ela transporia a entrada do meu quarto, no entanto, tudo o que distingui foi uma espécie de lamento, vindo do quarto do meu irmão. Não, havia algo mais, um… gotejar? Sim, era isso. Sorri, porque, agora, chovia no mundo real e no da fantasia.
Uma mão penetrou na gruta de cobertores e pousou no meu antebraço. O frio que dela adveio fez-me compreender que não pertencia à pessoa por quem eu esperava, o que se veio a confirmar, assim que a cabeça do meu irmão assomou à entrada do meu abrigo. Dei-lhe espaço, vagamente esperançada de que ele se quisesse juntar à brincadeira. E eis que ele mergulhou mesmo na minha confusão de cobertas, tremendo devido a algo mais do que simples frio.
Não precisava de acender a lanterna para ver que ele estava a chorar, nem precisava de lhe perguntar porquê; o atraso da minha mãe e as suas lágrimas falavam por si. Mas precisava de o abraçar e de me juntar à sua fúnebre melodia.
Com a cabeça enterrada no seu peito, lamentei ter alterado a rotina dos meus dias. Talvez, se tivesse feito o que sempre fazia, os meus pais pudessem voltar para nós e todas aquelas lágrimas fossem escusadas. Seguindo essa linha de pensamento, repeti a minha pergunta, certa de que seria a última vez:
– Porque é que chove, mano?
Ele apertou-me um pouco mais, antes de se afastar ligeiramente, de modo a poder encarar-me, olhos nos olhos.
– Porque a Terra está viva e tem sentimentos, como nós. Quando está feliz, o Sol brilha e nós podemos brincar na rua. Quando está triste, mergulha-nos na escuridão e chora… A chuva não é mais do que as lágrimas do mundo.
Eu anuí, soluçando devido à minha perda, mas sabendo que aquela era a resposta pela qual eu sempre esperara.