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O Circuito das Prendas

Há cada vez mais gente que oferece prendas que recebeu. Não há dinheiro, ou tempo, ou pachorra. Com um papel de embrulho novo, ou o velho passado a ferro, a coisa passa. Assim como passa o perfume já experimentado dentro de embalagem nova. Às vezes não há tempo, ou disposição, para desembrulhar a prenda recebida e guardam-se umas poucas para quando for necessário oferecer algo rapidamente a alguém.

O hábito da “re-prenda” generalizou-se e tem um futuro à sua frente. A evolução previsível é a que passo a expor. Numa primeira fase, depois de oferecermos aos nossos amigos as prendas que outros amigos nos ofereceram antes, com algum ou nenhum uso e com apenas uma embalagem nova, vamos começar a re-oferecer o que nos deram sem chegar a abrir a embalagem. Isto, como é evidente, e depois de algum tempo após a institucionalização do uso, vai levar a um ponto em que será considerado de mau tom abrir a embalagem de uma prenda – o que tornará obviamente irrelevante o seu conteúdo.

A partir daqui é fácil: vão um dia passar a oferecer-se prendas sem nada lá dentro, ou com apenas um pedaço de esferovite e algo a fazer peso, tudo devidamente embalado em papel lustroso e colorido. Com um laço.

É evidente que em tempos de digitalização acelerada e de predomínio absoluto do virtual sobre o real, alguém se lembrará um dia de abrir uma loja na internet em que se poderá escolher a imagem de uma prenda, que depois se enviará por email com uns parabéns e uns smiles para algum aniversariante ou para toda a gente nas épocas festivas.

É claro ainda que o processo da preguiça, da forretice e da despersonalização das relações humanas, se é que podem continuar a ter esse nome, não vai terminar assim. E por isso chegará o dia em que, em lugar de mandarmos uma fotografia de uma embalagem colorida e com um laço de algo sem nada lá dentro, acabaremos por reencaminhar, sem vergonha ou remorso, as fotografias de prendas que nós próprios recebemos.

Por: António Ferreira

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