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O cheiro dos velhos

Tresler

Sou velho. Tenho 83 anos. Os meus filhos não me querem com eles e eu acho que detestaria viver em casa deles. Sei que discutem entre eles o que fazer de mim, agora que a minha mulher faleceu. Às claras não dizem que não ficam comigo mas vão adiando a decisão enquanto para já vou vivendo nesta casa fria de uma aldeia isolada com o apoio de um vizinho. A roupa não andará muito limpa, mudo-a poucas vezes, a casa vai acumulando pó e teias de aranha, não como grande coisa, vou arrastando as pernas caindo aqui ou acolá, até agora sem mazelas. Custa-me a passar o tempo. E no entanto tenho uma filha reformada que, por viver mais perto de mim, poderia ser a minha cuidadora ideal podendo beneficiar da minha pensão. Mas, como a minha nora mora 300 quilómetros mais abaixo, a minha filha não se imagina a ser a perdedora que vai ficar dependente do velho de dia e de noite. Já lhes ouvi falar num lar. Os homens, o meu filho e o meu genro, calam-se: não é com eles. Deixam isso ao génio feminino e elas não querem dividir-me a meses. Idealizaram todos um género de vida, pleno de autonomia (que depois não chegam a realizar de modo cabal), baseado em ter muitas coisas, sendo muito livres, mas não sabendo bem o que fazer com isso tudo. Quando aí vêm, enchem a casa de prendas inúteis de Natal. Mas os meus netos não gostam cá do velho. Acho que a idade cheira. Apesar de algumas notas que lhes dou nestas alturas, vêm e passam o tempo na Internet ou na televisão. Não vão deitar uma lágrima por mim.

Sou mulher, estou reformada. Tenho 55 anos. Passo os dias entre a casa e o quintal, tenho a casa num brinquinho. Trabalhei trinta anos, negociei uma pré-reforma e estou agora muito bem, ao contrário de tantas outras. O marido também vai ganhando razoavelmente, dá para mim e para os filhos. O meu pai já está com dificuldades de viver sozinho mas prefiro que ele fique nas suas quintas. Embora goste dele (é meu pai), não me apetece tê-lo por perto, a ser dependente dele, sendo ainda por cima uma pessoa que não causaria boa impressão aos nossos amigos. Seria como voltar a ter bebés outra vez, uma maçada aos 50. Ainda bem que a minha cunhada está de acordo comigo. E vai ficar tão bem no lar. Mas sinto alguma estranheza que os meus filhos queiram cada vez menos ir vê-lo. Parece que quanto menos eu o quero por perto, menos eles querem também. Não aguento mesmo é as alusões dos familiares a dizer que eu é que tinha tempo para o aturar. E as bocas um pouco insidiosas a falar de “Filha és, mãe serás”. Aliás nem me imagino velha. Espero morrer ainda decente e sem causar complicações: também não sei se os meus filhos me quereriam em casa. Vou ser difícil de aturar.

Sou um rapaz de 23 anos. Estou a acabar um curso na capital. Vou regularmente à cidade onde nasci. Cada dois ou três meses vou também à aldeia ver o velhote, o meu avô. O meu avô está cada vez mais tolinho e eu a maior parte das vezes sou também frio para ele, fruto da falta de convivência. Tem pouco interesse o velho. Mas não deixo de tomar consciência desta “desumanização da relação com os velhos” e desta quase “violência doméstica” (por abandono) a que os idosos estão votados. Por isso é difícil entender as atitudes da minha mãe quando diz que levar o velho para casa seria “abdicar da sua vida”. E no entanto escandaliza-se quando ouve falar (na TV) dos velhos esquecidos nos hospitais. Mas ela não abdicou de muito quando me teve a mim? Qual a diferença que faz entre um filho e um pai? Porquê esta frieza tão comum hoje relativamente aos velhos? Serão reações dos cinquenta anos? Um autor que li há dias falava na “libertação da casa”, combate que a mulher empreendeu nestas décadas de feminismo em que a mulher (a cuidadora “natural”) não conquistou ainda de modo seguro a cooperação do macho. Fechar-se outra vez em casa para cuidar de outros? Nem pensar, dizem elas. O meu pai cala-se como se fosse coisa que não lhe dissesse respeito. Há dias eu disse à minha mãe na brincadeira: “Quando tiveres a idade do avô, meto-te num lar.” Olhou para mim e riu-se. Mas não achou graça.

(Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. Divagações a partir da leitura de “A Crise, a Família e a Crise da Família”, de Mónica Leal da Silva, Fund. Francisco Manuel dos Santos, 2012)

Por: Joaquim Igreja

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