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O Canil

A gritaria em volta do orçamento vai aumentar de dia para dia até ao momento, inevitável, em que vai ser aprovado. Uns vão dizer que é o orçamento possível e outros que é péssimo, ou pelo menos muito mau. A oposição vai dizer que a culpa é do governo, o governo vai chamar à responsabilidade a crise internacional e a pesada herança dos governos do PSD; o PC e o Bloco vão exigir aumentos de salários e pensões (pelo menos cinco por cento de aumento) e a eliminação de portagens, propinas e taxas moderadoras – tudo a pagar à custa dos “fabulosos lucros da banca”. Cavaco, por sua vez, vai continuar calado ou então. se disser alguma coisa, dirá palavras de circunstância avulsas com um tom de voz muito responsável e um ar muito grave.

Medina Carreira, a quem os ignorantes chamavam sarcasticamente de “Cassandra do Regime” (esquecendo que a Cassandra das más notícias da mitologia grega tinha razão e que a sua tragédia era apenas não ser ouvida), já tinha avisado há muito que a situação era insustentável e que o estado a que chegámos agora era, a seguirem-se as políticas que foram seguidas, inevitável. Não podíamos continuar a gastar o que gastávamos, a endividarmo-nos ao ritmo a que o fazíamos, a assegurar direitos para os quais não havia receita garantida. Durante anos, pusemos os direitos adquiridos e as “justas reivindicações” de todos à frente da capacidade de os satisfazer. Não havia dinheiro mas havia crédito e havia quem emprestasse a juros baixos. Havia mais vida para além do défice e eram vergonhosas e politicamente incorrectas as perspectivas “economicistas”.

Todos tinham acesso aos números e todos sabiam qual o caminho que as coisas levavam. Nem era preciso haver um Medina Carreira para avisar: bastava saber ler os números. A mim parecia-me evidente que se exportávamos menos do que importávamos ou gastávamos mais do que produzíamos a coisa só podia acabar mal, mas havia iluminados que diziam, com um ar superiormente inteligente que “a coisa não é bem assim” ou que “a lógica de gestão de um Estado não é a mesma de uma família” – como se um Estado, contrariamente a uma família, não tivesse de ser bom de contas. Os sinais eram evidentes mas a forma como os leram demonstrou, entre outras coisas, que não estavam à altura – desde o mais anónimo e silencioso deputado até ao presidente desta desgraçada república.

E é assim que estamos suspensos, todos, da solução que Passos Coelho vai encontrar para salvar a face aprovando o orçamento que jurou antes chumbar. Ele sabe muito bem, como sabemos todos, que este orçamento é uma imposição de Bruxelas (melhor, de Ângela Merkel), como castigo, aliás previsível, pelos anos e anos de má governação e má oposição. Por isso, como um bom cão, e cumpridos os rituais de indignação ofendida exigidos pelas praxes do canil, ele vai cumprir ordens superiores. Ou assim o esperamos.

Por: António Ferreira

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