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O bluesman pós-moderno

Elliott Sharp no Auditório Municipal da Guarda, após o concerto

As expectativas eram muitas. A possibilidade de ver ao vivo uma das maiores sumidades musicais do panorama musical “avantgarde” internacional, deixaram os melómanos da Guarda (e não só) suspensos e ansiosos. Com o seu estatuto artístico, apenas um John Zorn, um Derek Bailey ou um Fred Frith se lhe equipara no contexto da música contemporânea. Elliott Sharp, um dos músicos mais inovadores, originais e criativos que toda a cena “downtown” nova-iorquina já produziu, veio à Guarda para um concerto exclusivo (no passado dia 29 de Janeiro), o último da sua mini-digressão pela Europa que teve início em Viena de Áustria. Elliott Sharp, o multi-instrumentista que tem no seu currículo mais de 50 discos editados, dezenas de colaborações com os mais prestigiados músicos de todos os quadrantes, o experimentalista nato do rock, do jazz, da improvisação, do blues ou da electrónica multimédia, mostrou na Guarda a sua faceta menos conhecida: a de músico acústico. Aliás, o concerto da Guarda foi baseado no seu último disco, “The Velocity of Hue” (editado no final de 2003 e praticamente todo ele acústico).

Sharp, de aparência austera, entrou sozinho no palco: alto e pálido, calvo e trajado de negro. Sentou-se numa cadeira acompanhado apenas de uma guitarra acústica amplificada e de um computador portátil, o qual só faria uso na segunda metade do espectáculo. Quando o público, que enchia o Auditório Municipal, ouviu os primeiros segundos de música, percebeu de imediato que estava perante um guitarrista fora de série. Um guitarrista cuja técnica está ao serviço da criatividade (e não o inverso), um guitarrista visionário cujo propósito é o de superar as formas musicais ortodoxas e dar-lhes uma revigorada abordagem estética. Sereno e concentrado na sua performance, como que acometido de profunda meditação Zen, o músico de Nova Iorque presenteou o público com um concerto, digamos, desconcertante. A sua técnica guitarrística não se assemelha a nenhuma que seja convencionalmente aceite, e as sonoridades daí resultantes vão ao encontro dessa mesma premissa. Ou seja, tudo o que Sharp tem para oferecer musicalmente, seja ao vivo, seja nos discos, entronca na mais total das liberdades criativas, recusando formalismos que não estejam em sintonia com a sua veia artística tão original quanto estonteante.

Na primeira parte do concerto Elliott Sharp envereda pela exploração melódica e rítmica da guitarra, evocando laivos estilísticos – sempre com a improvisação como base – tão diversos como o jazz, o blues, o flamenco ou até a música tradicional chinesa, pela subtil forma como Sharp dedilhava as cordas da guitarra (ou percutia nelas de modo vertiginoso). De resto, o seu domínio absoluto sobre o instrumento causou espanto nos espectadores, como que interrogando-se como era possível, a partir de uma simples guitarra acústica, originar uma tão variada e rica verve de sensações, de timbres, de apontamentos sonoros, de complexos rendilhados.

A segunda parte do concerto foi interpretada com a ajuda de um computador portátil, que basicamente acrescentava efeitos à guitarra, enriquecendo a paleta tímbrica do todo musical. No habitual “encore”, Elliott Sharp dedicou (cinicamente) uma curta peça a George W. Bush: um prodigioso e sofisticadíssimo tema rhythm’n’blues, interpretado pelo músico norte-americano como se este fosse um bluesman pós-moderno. E não é, afinal, Elliott Sharp um músico pós-moderno?

Comentário de: Victor Afonso

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