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O auge

observatório de ornitorrincos

Semana passada. Um telefonema. Zé Carlos. O leitor desculpar-me-á. Esta escrita à Pedro Paixão. É da emoção. Diz-me, ao telefone: “Estás ao lado do Miguel Esteves Cardoso”. Respondi-lhe com humildade: “Nada disso, estou muito abaixo do Mestre”. “Pois estás”, disse ele com a sinceridade própria dos amigos e dos invejosos que só nos querem mal e desejam que percamos a nossa compostura como Carlos Castro perdeu a malinha com roupa e medicamentos que levava para a Turquia. “Mas não é isso”, disse-me ele, “é que n’O Interior o teu texto está ao lado de um do Miguel Esteves Cardoso”. Fiquei realmente abalado. Tive mesmo de parar o que estava a fazer. Até apertei as calças e parei o DVD. Um texto meu à direita de um texto d’Ele.

(Paro para explicar quem foi, para mim, Miguel Esteves Cardoso. Nunca o conheci, nunca Lhe falei e Ele não faz a mínima ideia de quem eu seja. Mas desde o primeiro artigo d’Ele que li na minha adolescência que quis saber escrever daquela maneira. Aprendi a escrever também ao imitar-Lhe o estilo e as ideias. Quis também espalhar a palavra, consigo apenas espalhar-me nas palavras.)

O director d’O Interior teve um propósito pedagógico na escolha da montagem gráfica. Mostrar a deficiência da cópia ao lado da aura sublime do original. Que como Cristo transformou água em vinho, Miguel Esteves Cardoso transforma vinho em literatura. Um texto bem escrito sobre vinhos bem feitos. E ao lado? Um artigo mal amanhado sobre um programa de televisão mal parido. Na fotografia, MEC – um acrónimo já tão nome próprio que o dicionário do Word aceita de imediato – olha de forma enfadada, talvez para o leitor, talvez para o meu texto. Como quem pensa: “Mas que raio de porra é este artigo que puseram aqui ao lado do meu? Já não me basta a Leonor Pinhão no Expresso? Olha que é azar.”

Pode o leitor pensar que este artigo é outra ironia e que na realidade desprezo ou não aprecio a escrita de Miguel Esteves Cardoso. Não é. É mesmo o que penso. É a minha forma tosca de agradecer a quem, sem o saber, me ensinou muito. Obrigado, Mestre. Um dia, quis imitar-Te, copiar-Te, escrever como só Tu sabes. Saiu isto que se segue, há 12 anos atrás. Perdoa-me.

Efémeras efemérides

Esta revolução [25 de Abril] foi feita por uma data de capitães do Exército. São os chamados Capitães de Abril. Seriam Capitães de Areia se tivessem feito a revolução na praia. E se a tivessem feito no Verão, para aproveitar ter o povo de férias, o golpe de Estado poderia muito bem ser na Praia dos Tomates. Eles seriam os Capitães dos Tomates e Portugal, algures em Agosto, teria um feriado chamado Dia do Golpe nos Tomates. O 25 de Abril é comemorado pelo grupo social mais patusco do país. São os amigalhaços, amigos das patuscadas, que são confraternizações de patuscos. De patusco derivou o abreviado “pá”, muito usado também pelos Capitães do Asfalto. (…) Qualquer adolescente que se preze é perseguido pelos novos PIDE (Pais Insensíveis aos Descendentes em Efervescência). É um preso de consciência. E também leva uns tabefes. Outras grandes provas da resistência da rapaziada [de hoje] são as reuniões clandestinas do MFA (Música, Fumo e Álcool). Mas em vez de se discutir a alma do regime, discute-se o corpo da Regina.

[in Beira Interior, nº 7, Abril 1994]

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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