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O amante de música clássica é perigoso ao volante

Atmosfera Portátil

Existe um tema que já se discute há muitos anos e que ultimamente tem sido alvo de séria investigação científica e académica: a relação entre a personalidade e os gostos musicais. Isto é, a neurociência e a psicologia comportamental têm revelado que as preferências musicais definem os traços de personalidade de cada indivíduo. Investigadores da Universidade do Texas (com coordenação do psicólogo Sam Goslin) e o psicólogo português Nuno Consciência coincidem neste ponto: que a preferência por um determinado estilo musical – do rock ao blues, da clássica ao house, do jazz ao hip-hop – define o perfil de personalidade, tese comprovada através de experiências e testes realizados laboratorialmente. Os sons alteram a química do cérebro e despoletam descargas de substâncias neurotransmissoras, como a dopamina ou a serotonina. A música altera, de igual modo, o nosso estado de ânimo consoante a circunstância existencial e é um tónico para a alma. Existe um conjunto de vivências que nos direcciona para a fruição de um determinado género musical, com o intuito de libertar emoções provenientes dessas vivências. A música que ouvimos é, em última análise, um reflexo de nós próprios. Um jogo de espelhos, portanto.

Nuno Consciência vai mais longe e escalpeliza a relação entre psicanálise, música e criatividade. Logo, é natural que a música seja dos fenómenos actuais que mais contribui para a tribalização de um grupo, para a consolidação da sua identidade cultural e social. É a música que une os jovens e adultos que gostam de hip-hop, de heavy metal, de música vanguardista, de ópera, de rock. Secundariamente à uniformização do gosto musical, esses grupos geram à sua volta outros elementos identitários: a roupa, as atitudes, os códigos sociais, etc. A música é, seguramente, a linguagem cultural que mais contribui para agregar socialmente os indivíduos em grupo. Segundo o estudo referido, foram detectadas as seguintes relações:

Hip-hop – tipo de personalidade: extrovertidos, enérgicos, solteiros, elevada auto-estima.

Rock – tipo de personalidade: activos, aventureiros e ateus.

Jazz/Blues – tipo de personalidade: inteligentes, criativos, liberais e tolerantes.

Ópera/Clássica – tipo de personalidade: casados, cultos, perigosos ao volante (!).

Claro que se levanta sempre a dúvida: e quem gosta, nem que seja um bocadinho e simultaneamente, de todos estes géneros musicais, qual será o seu perfil de personalidade? Recentemente foi editado um livro que procura dar algumas respostas em relação à influência que a música tem na formação da personalidade humana. Chama-se “Musicofilia” e o seu autor é Oliver Sacks, famoso neurologista que tem dedicado grande parte da sua vida a estudar a influência que a música tem nos seus doentes, nomeadamente, naqueles que sofrem de doenças degenerativas como Alzheimer ou Parkinson. O resultado das suas investigações e experiências revela que os sons são um remédio para a demência (não é novidade absoluta), mas que também podem levar à loucura uma pessoa mentalmente sã (esta afirmação já contém alguma novidade). Conta um caso de um pianista que sofria de uma variante grave de Parkinson que mal se conseguia mover com espasmos nervosos. Um dia sentou-se ao piano e interpretou brilhantemente um “Nocturno” de Chopin. Assim que parou de tocar, voltaram os sintomas da sua doença. Este é apenas um exemplo (entre muitos) do poder que a música exerce sobre o nosso cérebro, num processo ainda mal compreendido pelos vários ramos da ciência. A mais recente técnica de pesquisa cerebral, a ressonância magnética funcional, demonstra que ainda há muito para descobrir sobre o modo como o cérebro humano responde aos estímulos sonoros e musicais. Mas uma coisa é certa: a música tem propriedades terapêuticas incríveis (a musicoterapia é uma ciência comprovada), capaz de transformar e moldar a essência de um ser humano. E os relatos científicos incluídos no livro “Musicofilia” comprovam-no.

Por: Victor Afonso

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