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Novos genes literários

Observatório de Ornitorrincos

Já estamos em Agosto (reparem os leitores que não foram para o Algarve como neste espaço se escrevem ainda os nomes dos meses com letra maiúscula, que os socialismos linguísticos aqui não entram). Agosto é o mês para leituras de férias, excepto para quem trabalha, e o“Observatório de Ornitorrincos” avança as novéis recomendações literárias da estação. Depois do “Almanaque de Santa Zita”, da “Sports Illustrated – edição fatos de banho”, do “Borda d’Água” e de folhetos de medicamentos, este ano sugere-se a leitura de duas publicações recentes com profundas preocupações estéticas e dedicadas à decoração de interiores (e exteriores, em alguns casos): “Nova Gente Decoração & Ambientes” e “Playboy – Edição Portugal”, ambas publicadas neste mês de Agosto.

Edmund Burke escreveu longamente – ou pelo menos mais do que Jorge Lacão – sobre a mútua exclusão entre o sublime e o belo, e é a partir desta distinção que devem ser compreendidas as duas revistas. O filósofo irlandês sustentava que o sublime provoca no receptor uma sensação estranha ligada à incerteza e à confusão. O ensaio de capa da “Playboy”, com a DJ Sexation, é um exemplo de nudez sublime, pois quem olha para os seios da modelo não pode deixar de sentir uma estranheza incerta e confusa: são verdadeiros ou enchidos com silicone?

Ainda à luz da teoria de Burke, as páginas da “Nova Gente Decoração & Ambientes” dedicadas a ambientes Zen são exemplos de sublime. Ainda que as imagens possam inspirar horror, há um certo alívio provocado pelo reconhecimento do leitor de que aquilo não passa de ficção.

Refira-se, a propósito, que ambas as revistas são publicações longamente dedicadas à ficção. Dos contos de Pedro Paixão (Playboy, pag. 108) às casas de 700 metros quadrados (NGDA, pag. 40), da menina das tatuagens (Playboy, pag. 130) aos utensílios para gelados (NGDA, pag. 5), tudo nestas revistas relembra o estilo de Dan Brown: embora o estilo narrativo pareça descrever uma realidade factual, estamos claramente no domínio da invenção criativa dos seus autores.

Na “Nova Gente Decoração & Ambientes” podemos encontrar a mais deliciosa remissão literária e cinéfila para Edith Wharton e Martin Scorcese. Com os olhos em “A Idade da Inocência”, aparece na página 32 um artigo intitulado “A Idade da Prateleira”. Numa revista que nos avisa na capa que o tema do mês é “Quartos de adolescente”, a conhecida idade do armário, deparamos aqui com a sugestiva idade da prateleira, apresentando uma deslumbrante narrativa visual semelhante à de Scorcese na sua adaptação de “A Idade da Inocência”.

A franchise portuguesa da revista fundada por Hugh Heffner alheou-se nesta edição das polémicas da educação e trata também de cinema, com uma entrevista a Woody Allen, que se considera “uma pessoa muito desinteressante”. Para quem compra a revista apenas para ver senhoras despidas, Woody Allen tem obviamente muito pouco interesse. Para os maluquinhos da tecnologia, a “Playboy” tem dois motivos de interesse: na página 100, “E3 – A maior conferência de videojogos do mundo”; na página 84, as maminhas de DJ Sexation.

Alguns exemplos do género erótico-minimalista da “Nova Gente Decoração & Ambientes” são o que mais surpreende aqueles que só agora têm contacto com a revista – e acrescente-se a título informativo que o autor deste texto tem a colecção completa de uma das revistas enquanto a outra foi lida pela primeira vez na vida. Num par de páginas sobre sofás lê-se apenas “Cambalhotas” (pag. 28) e a secção de baloiços intitula-se “Doce balançar” (pag. 26). Quando a influência de Adília Lopes chega às revistas de decoração, sabemos que a sua “Autobiografia Sumária” (“Os meus gatos / gostam de brincar / com as minhas baratas.”) ficará para sempre na história da literatura. Na página 76, o ensaio “Jardins verticais” relembra os orgasmos verticais várias vezes exortados por Eduardo Prado Coelho.

As revistas terminam em sentido contrário. A “Playboy”, no seu tom saudosista, fecha com a recordação da presença de Rachel Welch nas suas páginas em 1995. A “Nova Gente Decoração & Interiores”, publicação futurista, remete já para os conteúdos de Setembro, com destaque para escritórios e apartamentos pequenos. Como defendiam os futuristas dos anos 30, teremos em Setembro a burguesia e o povo de mãos dadas pelo futuro da decoração.

Por: Nuno Amaral Jerónimo

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