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Nova Orleães e o luto (parte III)

“Todas as mesinhas de madeira gordurosa têm filas duplas de cadeiras, e toda a gente se conhece, e por momentos o mundo é este salão…”

Adaptado de Truman Capote em “Os cães ladram”

Mesmo que estejamos longe, levamos connosco os nossos roteiros sentimentais e as nossas referências culturais. E, muitas vezes, é preciso percorrê-los até à exaustão para conseguirmos prestar atenção a algo de novo que está ali mesmo à nossa frente à espera de ser descoberto. Isto aplica-se às pessoas e às cidades.

Em NO, além do percurso annericeano, que já descrevi, tive que fazer, em atenção à minha companhia de viagem, o itinerário do gótico.

Não, não estou a falar de Santarém.

Estou a falar dos góticos, mesmo: aquela tribo urbana que se caracteriza pela mistura de cores berrantes, nos cabelos e nas roupas, com os clássicos branco e negro, tudo isto enfeitado com muitos piercings, cintos, emblemas e outros acessórios eventualmente chocantes.

Claro que, no fim, acabámos onde tínhamos de acabar: nos clubes de jazz e nos rituais divertidos e, simultaneamente, tétricos do Halloween e do Dia-de-Todos-Os-Santos.

Mas primeiro tivemos que fazer a Decatur Street, em que as lojas de antiguidades e as casas particulares _ de portadas abertas, cujo riquíssimo recheio faria pensar que estamos perante mais um antiquário, não fosse a televisão acesa e o respectivo proprietário recostado no canapé _ alternam com as lojas fétiche e os bares escuros, pintados de vermelho e cheios de anjinhos nas paredes, frequentados essencialmente pela comunidade gótica.

O que estes sítios têm de bom, além da semi-obscuridade e da música, é que começam a funcionar cedo em qualquer parte do mundo (às 22h já se pode começar a dançar _ não é preciso esperar até às 4h da manhã como nas discotecas tradicionais) e a atitude blasée é a regra, de forma que se pode fazer o que se quiser, sem que ninguém pareça mostrar demasiada atenção. Bom para tímidos excêntricos, em suma. Experimentem que vão ver que gostam.

Nessa noite, a minha filha estava muito cansada e esteve sempre sentada a olhar, fazendo de conta que não olhava. No fim, observou: “Mãe, a dança desta gente é absolutamente coreografada; eles não sentem, representam.” Pode ser outra forma de sentir, disse eu; devem andar todos no ballet; além disso, não te esqueças que esta é a terra de todos os disfarces: há fatos de anjo, de fauno ou de vampiro em todas as esquinas”.

Saltando, de comum acordo, a Bourbon Street, que é o “ponto alto” do French Quarter, com muita cerveja, muitos colares falsos e muita música pimba, começámos a entrar, aos poucos, na verdadeira NO.

Sentadas a uma mesinha gordurenta, no 544 Club, onde entrámos atraídas pela melancolia da música e pela rouquidão da voz, assistimos a um fabuloso concerto dos The Gary Brown and Feelings, com dois brancos zeppelineanos à guitarra e um negro amstrongueano a cantar. Um casal de pele escura bamboleava-se na pista como só eles sabem fazer. Os pretos não dançam sózinhos, como nós. Na casa de banho a rapariga disse-me: “I love your stocks.”* Eu agradeci e pensei: ” E eu adoro as tuas formas opulentas, o teu vestido violeta e coleante e essa tua maneira escandalosa e sincera de dançar.”

Quando voltei para a sala ela estava a dançar com outro. Mas o estilo era o mesmo. Uma oscilação lenta onde tudo parecia centrar-se em volta da única região que nunca se separava da do companheiro: a púbica.

* “Adoro as suas meias”

(continua)

Por: Maria Massena

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