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Notas soltas no ano 2038

Sinais do Tempo

Aqui deitado numa cama articulada, aguardo calmamente, que me mudem a fralda e me lavem. Não tenho pressa. Longe vão os tempos em que os dias corriam mais rápido que as águas cinzentas de um rio em pleno Inverno. Acordava de manhã angustiado ao pensar como poderia gerir os segundos de forma a que as 24 horas que preenchem o dia bastassem. A memória desses tempos é vaga, a informação vai-se apagando de cada vez que tento lembrar-me. Por vezes misturo os factos e fico sem perceber se realmente aconteceram ou se não passam de vivências de outros misturadas com as minhas, ou mesmo curtos delírios que confundem a realidade com a imaginação. Aqui estou à espera, sem ansiedade, limitado, mas não pelo tempo. Testo de novo a memória, dos dias passados, e aparecem-me de forma fugaz discussões sobre um aeroporto novo na Ota ou em Alcochete, que nunca foi inaugurado, porque simplesmente quando foi acabado já não havia aviões, culpa das crises petrolíferas sucessivas. Agora é um gigante centro comercial de outlet. Os automóveis, agora movidos pela luz solar e a pilhas de hidrogénio, circulam a 60 Km/h, tornando irrelevantes as auto-estradas de três pistas, construídas no final do século 20. Lembro-me também de uma crise que envolvia os vendilhões do templo, mas não me consigo recordar como ficou resolvida essa confusão. Mas sei que a banca nacional já não existe. O INEM criou uma rede de transporte de doentes porta a porta, passando a existir quatro grandes hospitais, os restantes fecharam. Quando o afluxo de doentes é elevado então montam umas tendas da protecção civil, resolvem o problema e vão-se embora. Afinal o tempo, esse maldito, veio dar razão ao ministro Correia de Campos. O futuro é cada vez mais incerto. Vivemos numa sociedade saciada. Desapareceram os países e deram lugar às grandes confederações da indústria, do comércio e do ócio. O lugar em que vivemos está dependente da confederação do ócio e congrega os antigos países da Europa Ocidental, onde nada se produz, tudo se subsidia e tudo se consome. Na África encontramos a grande confederação agrícola, passando ao estatuto do grande celeiro do mundo. A Ásia, mantém a mão-de-obra barata, concentrou toda a indústria pesada e poluidora. A América tem os maiores comerciantes e especuladores.

Chegou finalmente a auxiliar Tina X2f, é igualzinha à Tina X2e, mas tem um upgrade, que torna os movimentos mais finos e algo de sedutor no olhar. Pareceu-me ouvi-la dizer um bom dia e o meu nome. Não se queixa do trabalho. Olha para o código de barras, faz a leitura das actividades e com a ajuda de uma grua eleva-me da cama, retira-me a fralda e inicia o processo de higiene. Suspenso a 50 cm da cama, sinto um alívio imenso. O medo de cair passou há muito, mas estranhamente abro os braços como se fosse voar, fazendo-me lembrar os reflexos primitivos dos lactentes. A Gina X2f é excelente, tem umas mãos macias que acariciam a minha pele frágil e enrugada, sinto que gosta de mim. O calor tépido da água faz-me sentir bem. Chegou a refeição, que consta habitualmente de umas papas de milho transgénico liofilizado em leite biológio certificado e ovos isentos de salmonelas produzidos por técnicas de manipulação genética, com um sabor excelente. Bastam duas colheres e consigo receber um elevado teor calórico. Maravilhas da técnica. Chegou Gina 3 a. Tem como função manter-me acordado, tem com ela alguns filmes e música diversa. Quem a programou e desenhou sabia o que estava a fazer. Enquanto ouço a voz extraordinária de Layka, massaja-me suavemente o corpo cansado, projectando em simultâneo no tecto imagens de um filme de que me lembro vagamente ou talvez não. Podem repetir os filmes vezes sem conta que logo me esqueço. O tempo vai passando lento, sem hora definida ou marcada, sem objectivos excepto o prazer de ainda estar vivo. Aguardo um transplante de coração bio artificial fabricado a partir das minhas células. Os anos em que fumei só me fizeram bem no momento, deixando sequelas imensas. Tenho a certeza que não viverei muito mais. Este estado de dependência não me faz bem nem mal, é-me indiferente. Ao longo do dia passam por mim vários “robot”, Ginas, Tinas, Finas, todos femininos, todos com funções diferentes, todos simpáticos, sedutores, fortes e sem sinais de cansaço ou de tristeza. Têm tarefas definidas e formatadas. Raramente se enganam e não lêem jornais. Nunca disseram “jamais” e portanto nunca tiveram que engolir sapos. Tudo isto e ainda não chegou a hora do almoço, maldito tempo que demora a passar.

Por: João Santiago Correia

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