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No Centenário da República: onde reside a Soberania?

Razão e Região

A natureza dos sistemas políticos e das circunstâncias que lhes deram vida pode ser muito bem aferida através de uma leitura comparativa dos princípios fundamentais inscritos nas respectivas Constituições. E um deles é o princípio da Soberania. Onde reside a soberania?

É muito interessante verificar que a Constituição republicana de 1911 difere substancialmente, quanto a este princípio, da Constituição de 1976. Ou seja, enquanto para a Constituição de 1911 a soberania reside essencialmente na Nação (art. 5, título III), para a Constituição de 1976 a soberania reside no povo (art. 3.º). À primeira vista, a diferença parece não ser de monta, já que é possível dizer que o corpo orgânico da Nação é o povo. Mas não é rigorosamente assim. Em boa verdade, o corpo orgânico da Nação é constituído pelos órgãos de soberania (PR, AR, Governo, Tribunais), não pelo povo. Não é por acaso que, habitualmente, o conceito usado é o de Estado-nação. Pondo de parte essa ideia de que o povo é uma ficção ou, então, de que se identifica com as classes subalternas, com os trabalhadores ou com os oprimidos, recuperando o velho conceito de Terceiro Estado («Tiers Etat»), sempre será possível dizer que o Povo é o conjunto dos cidadãos que integram um concreto Estado-nação. Como, por exemplo, para a Constituição francesa de 1793, onde «o povo soberano é a universalidade dos cidadãos franceses» (Acto constitucional, art. 7, «Da soberania do povo»). E eu creio que esta deverá permanecer como ideia moderna de povo. Mas o que é interessante notar é que a ideia expressa na Constituição de 1911 sobre a soberania é a mesma que encontramos na Constituição francesa de 1791: «A soberania pertence à Nação», de onde emanam os Poderes, exercidos somente por delegação (art.s 1.º e 2.º do Título III»). De resto, o mesmo se verifica na Constituição de 1822 (art. 26, título II).

Nunca fiz um estudo aprofundado (pela análise histórico-política das várias constituições) desta diferença de posições sobre a soberania: se a soberania reside no povo ou se reside na Nação. Mas inclino-me a pensar que a ideia de que a soberania reside na Nação é mais genuinamente liberal e mais conforme ao conceito central da democracia representativa (o de «mandato não imperativo» ou de mandato sem vínculo) do que a ideia de que a soberania reside no povo. Porquê? Porque assim se compreende mais facilmente que o mandato soberano confiado ao deputado pelos cidadãos seja sem vínculo e irrevogável. A verdade é que quando a soberania transita para a Nação – naturalmente a partir do povo, que é seu titular remoto – os titulares da soberania passam a representar, não os concretos cidadãos que nele votaram, mas a Nação, garantindo assim a irrevogabilidade do mandato (não é por acaso que se diz, na generalidade das Constituições, que o deputado representa a Nação, não o círculo por que foi eleito – n.º 2, art. 152, da CRP). Como sabemos, se é assim em todas as democracias representativas, o mesmo não se passa nas democracias directas, onde os mandatos são sempre revogáveis, porque são mandatos com vínculo (veja-se, por exemplo, a famosa constituição-modelo soviética de 1936, art. 142). O que é que pretendo dizer com isto? Simplesmente que esta diferença de posição das duas constituições portuguesas se deve a dois momentos diferentes em radicalidade política, sendo o primeiro, 1910, de natureza mais liberal e o segundo, 1974, de natureza mais socialista, compreendendo-se muito bem que os republicanos fossem mais sensíveis à matriz liberal da democracia (à democracia representativa) e os constituintes de Abril mais sensíveis a uma visão organicista da democracia (a formas mais próximas da democracia directa). Esta mesma diferença aconteceu na Revolução francesa com as Constituições de 1791 e de 1793 (onde «a soberania reside no povo», art. 25 da nova «Declaração»), sendo, como se sabe, a radicalidade política dos dois momentos bem diferente. Mas a pedra-de-toque é a do «mandato não imperativo» (não revogável), ou seja, a da total autonomia dos deputados quer em relação aos cidadãos que os elegeram quer em relação aos partidos que os propuseram. É por isso que também a Constituição francesa de 1791 diz que os representantes não serão representantes de um «departamento particular», mas de toda a Nação, não podendo ser-lhe dado nenhum [vínculo de] mandato (Título III, Secção III, art. 7). Só que esta autonomia, bem o sabemos, tem ainda uma história tão curta e tão pouco sedimentada no nosso País que muitos partidos têm como sua prática regular substituir, por decisão própria, deputados que não os representam a eles, mas à Nação. Tanto é verdade que, se eles próprios não quiserem, nem sequer podem ser substituídos (veja-se, por exemplo, o caso de Luísa Mesquita). Assim o exige a lógica própria da democracia representativa, fundada no sufrágio universal e tão distante daquelas visões organicistas da democracia que pululam por aí.

Por: João de Almeida Santos

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