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Nivoso

1. Imaginemos uma apresentação de uma obra literária. No painel, para lá do autor, figuram duas eméritas personalidades. Porém, os seus registos de resultam completamente opostos. Não por diferença de opinião, mas de estilo. O primeiro orador, impecável nas suas referências literárias. Faz as citações certas, o exórdio regulamentar, o uso parcimonioso das regras da eloquência. As mesmas que poderíamos encontrar em “Corte na Aldeia” (1619), de Francisco Rodrigues Lobo. O qual prescreve, na lição 9, como «regras de falar bem»: a humildade, a propriedade e o equilíbrio. Para o auditório, parecia que tudo estava no lugar certo. Com as citações “à propos”. Uma erudição imaculada. A mostragem discreta da medalha do «antifaçizmo». Gravidade e superioridade moral do «intelectual», qb. Um mundo circular, apertadinho, cristalizado. Traçado numa escala paroquial. Limitado a figuras devotas, como numa hagiografia à la carte, para animar uma erudição impactante. Neste universo, não existem a vertigem, a incerteza, o pequeno pormenor que tudo pode desafiar e pôr em causa. Não! O seu cenário predilecto é o de um presépio hierático. Uma galeria de figuras de cera colocadas ao serviço do hermetismo e, quiçá, do aborrecimento. Em contrapartida, o segundo orador faz valer qualidades raramente vistas neste país: a especulação intelectual firmada nas regras do mundo físico; a irreverência sem provocação; o constante apelo ao “back to basics”; uma leveza que faz passar, sem dar por ela, a verdadeira profundidade. E não se coibindo do uso do paradoxo e do oximoro. Do humor subtil e desconcertante. E tudo isto sem descurar a obra, afinal o objecto da intervenção. Discorrendo com ela, e não sobre ela. Irrigando o discurso com a indução, mais do que a dedução, à maneira dos gregos antigos. Formalmente, a intervenção do segundo orador está ao nível de uma Ted Talk. A do primeiro parece saída da oratória maneirista, em versão politicamente correcta. Eficácia versus retórica. Em suma, o primeiro orador fala de si por causa do livro. O segundo fala do livro através de si.

2. É usual olharmos para trás e acreditar que, no futuro, podemos sempre fazer melhor. Não deixar escapar uma oportunidade. Evitar o erro. Como se, nessa retrospectiva, não tivéssemos sido nós o actor, mas um esboço, um aprendiz que se olha com uma severidade e, a espaços, condescendência. Recriamos assim o passado à luz das necessidades do momento. Sejam elas a beatitude de um anoitecer sem falhas e sem espaços em branco. É possível que sim. Mas o caminho não é esse. Não éramos imperfeitos quando errámos. Nem heróis quando fizemos a escolha certa. Nem perdulários quando começámos a fazer perguntas. Nem demasiado ambiciosos quando quisemos triunfar. A vida é um reservatório sem fundo. O que fizemos, ou omitimos ontem, foi a medida exacta que preparou a nossa realidade actual. Não fomos “outro”. E é pouco provável que venhamos a ser ‘outro’. Mas não custa tentar…

3. Vi há pouco um filme alemão chamado “Stalingrad”. Cujo cenário, como já adivinharam, decorre na terrível batalha que virou o sentido da II Guerra Mundial. A narrativa decorre na perspectiva do exército germânico. O resultado é singular. Obriga a uma total mudança de perspectiva na forma de encarar o conflito. Sabendo-se que a História é a narrativa dos vencedores e a hegemonia cinematográfica ainda tem sede em Hollywwod, já não estranhamos ver no cinema mais ou menos o mesmo cliché: valorosos soldados anglo-americanos destroçam alemães e japoneses. Os primeiros são quase sempre “bons”, “humanos”, “justos”. Reconhecíveis como fazendo parte do “nosso” universo, que defendem contra a “barbárie”. Por sua vez, os alemães são retratados como robôs fanatizados. Alguns com a inevitável cicatriz no rosto. Quase todos são mostrados como serial killers, que emitem onomatopeias proto-germânicas, onde aparecem sempre as palavras “feuer” e “schnell”!… Trata-se, no fundo, de uma punição fora de tempo, previsível e bocejante. Voltando ao início, nada melhor para nos curar de uma impostura do que observar a mesma realidade de ambos os lados. Como fez Clint Eastwood na saga de Iwo Jima. No entanto, encarar os “boches” como combatentes singulares e humanos, não deixa de ter um sabor exótico e surpreendente!

4. O retorno à vida civil. Às palavras que aconchegam como uma braseira. Às palavras sussurradas pelo amor e só pelo amor. À doçura que se pode encontrar na aspereza das pedras. Às gargalhadas sãs numa roda de amigos. Ao percorrer de uma corda esticada sobre os espelhos desfeitos. Aos nomes antigos das ruas que me levam a parte nenhuma. Aos pássaros rasantes que nos tocam e nos deixam.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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