1. Existe um programa no canal Q chamado “Esquadrão do Amor”. Fala-se da vida civil, na vertente erótica e, quiçá, sentimental. Uma espécie de consultório onde os convidados comentam mensagens dos ouvintes, dizendo de sua justiça. E quem são os convidados? Um rapaz colorido, uma rapariga prafrentex e pronúncia cerrada do Porto e outro rapaz em registo ‘garanhão super experimentado’. A minha favorita é a rapariga do Porto. Aprende-se muito neste programa. Um delírio. É só amor, relações, traições. Quem conta o quê a quem. Se faz sentido decepcionar ou continuar. As “dinâmicas da relação”. Os dilemas. Enfim, um mundo fantástico e absorvente, apresentado por um grupo de sábios. Mas, vendo bem, para quê complicar? Ou, de outra maneira, com que direito simplificar?
2. A deputada socialista Isabel Moreira publicou um artigo no “Expresso” intitulado “Sabias que és de direita” (http://bit.ly/2ix4fVw). Segundo ela, a liberdade de expressão, como “valor absoluto”, é coisa de direita. Se não for devidamente enquadrada pela igualdade, não é um valor que possa ser reivindicado pela esquerda. Para o efeito, IM propõe o teste da verdade: acaso consigamos reter uma chalaça a propósito das mulheres, dos negros, dos “pobres”, da comunidade LGBT, e “dos mais fracos” em geral, então somos, garantidamente, “de esquerda”. Portanto, para alcançar tal “certificação de qualidade”, bastará repetir um certo mantra e usar uma cinta com espinhos, como os ascetas radicais. Cada vez que o praticante faz alguma alusão de carácter sexista, homofóbico, racista, ou xenófobo, a cinta aperta e o recém flagelado pensará duas vezes antes do próximo “deslize”. A autora não diz, mas a próxima fase será um chip implantado em todos os cidadãos. Que produzirá descargas eléctricas cada vez que o hospedeiro não se “conter” e disser palavras como “lelo”, “Guiné Konacri”, “arquiteta”, “preto”, “loira burra”, “Paco Naça”, “pegar de empurrão”, “chamuça”, “larilas”, “sapateira”, “turbante”, “ela sai ao pai”, etc.
3. Cada vez me incomoda mais essa questão das arrumações políticas com base na dicotomia “esquerda versus direita”. Como se fossem títulos nobiliárquicos vitalícios. Como se a regra não fosse a iconoclastia. Vou só dar o meu exemplo. Nos costumes, liberal qb. Na moral, avesso ao relativismo. Há um novelo de regras simples, desdobrado e glosado através dos séculos, que é perigoso ignorar. Na política, conservador, porque é a única forma de acomodar o cepticismo. E anarca, porque é a única forma de ser livre. Na economia, adepto das utopias da auto-suficiência e da troca directa. No limite, adepto moderado da utopia mais duradoura, até ao momento: o capitalismo. Na filosofia, algures num triângulo cujos vértices são Séneca, Nietzsche e Montaigne. Para descomplicar e focar na acção, o budismo. Tomado o exemplo, creio poder dizer que a composição heterodoxa da nossa realidade é a regra. E ainda bem que assim é.
4. A solidão abre frestas, alçapões, abismos. Não para nos debruçarmos sobre eles. Mas para que saibamos usar cordas, construir pontes, como se fosse uma questão de vida ou de morte. A solidão não cria novas ferramentas, mas obriga a confiar nas que existem. E a acender o fogo em qualquer lugar. A pele também abre sulcos, por onde correm rios e rolam seixos polidos pelo tempo. Os olhos brilham na escuridão, ávidos e atentos. E, se não chegar, é uma voz distante que conta mil histórias que são só uma.
5. A carruagem do comboio IC – que fazia a ligação entre a cidade onde vivo e a capital – era ocupada esmagadoramente por idosos. Que iam, com toda a certeza, passar a Consoada com os seus entes queridos. E a importância de tamanho reencontro podia ser medida por um óbvio sinal. As bagageiras iam atulhadas de inúmeros volumes suspeitos. De onde ressudavam aromas de fumeiro, queijo e filhoses acabadas de fritar. Um festim! Tudo junto, ocorreu-me que viajava no centro de uma bomba de colesterol natalício a 200km por hora! Numa esplendorosa e ternurenta manifestação de poder da famosa e, neste caso com propriedade, peste grisalha!…
6. Ser idealista é difícil, mas compensa. Em verdade vos digo, meus irmãos. Também é útil estar zangado. As vezes que forem precisas. Mas uma coisa é certa. Convém absolutamente estar zangado fora do idealismo e ser idealista fora da zanga.
Por: António Godinho Gil
* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia