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Nivoso

1. Os estivadores (sobretudo a minoria que se tem destacado na resistência à mudança) são uma classe “à parte”. Têm uma organização corporativa decalcada das guildas medievais, dos sindicatos controlados pela Máfia e, em grande medida, das corporações saídas da “Carta del Lavoro” fascista. O acesso à carteira profissional é ultra restrito. Reservado a filhos e enteados. E envolto numa trama burocrática sem paralelo em nenhuma profissão exercida neste país. Naturalmente, sem carteira não há emprego para ninguém. Depois, o sistema de horas extraordinárias tem um regime excepcional que escapa à legislação laboral. Por esse motivo, é normal um estivador “sacar” 4 000 Euros mensais. Os prejuízos que esta greve está a causar à economia nacional são incalculáveis. Até porque os números que aparecem na notícia ficarão sempre aquém do dano. O Governo pretende simplesmente acabar com regalias escandalosas, submetendo estes trabalhadores a uma lei que se aplica a todos. Como se esperava, a esquerda comunista acarinhou as suas reivindicações. Talvez pensando que são uma vanguarda revolucionária ou uma bolha mediática a explorar. Nada mais errado: a “luta” destes estivadores é inaceitável. Representa o que de mais atávico, imobilista e arrogante existe na sociedade portuguesa. Uma espécie de amostra trágica e extrema dos efeitos da ladainha dos “direitos adquiridos”.

2. No seu livro “Os Demónios” (ou “Os Possessos”, dependendo da tradução), Dostoievski utiliza dois personagens, Kirilov e Shatov, para exprimir a ambivalência da necessidade e importância de Deus. Kirilov acredita que a vida consiste em dor e sofrimento. Para ele, Deus não existe e, consequentemente, tudo é possível, incluindo o suicídio. Encarado como a expressão máxima da transcendência humana noutra forma, maxime uma existência divina. Observa que a felicidade não tem correspondência com as circunstâncias individuais, mas com um estado de espírito. Nesta linha, se alguém acredita na felicidade, será feliz, e nada haverá que a possa negar. O entendimento de Kirilov acerca de Deus ou da sua falta permite encará-lo como um dos personagens mais carismáticos criados pelo autor russo. Nesta obra, Kirilov surge como uma espécie de figura crística. Planeia matar-se para libertar os outros membros do grupo, perecendo pelos seus pecados. Toma assim em mãos o papel de Cristo, libertando a espécie humana para que todos possam aceder à tal transcendência que os aproximará de Deus. Shatov, pelo contrário, quer acreditar em Deus, mas pressente que não tem fé. Valoriza a ideia de Deus e toma a religião como um factor essencial para a identidade da nação russa. Mas deu-se conta de que o seu modo de vida e as suas referências não lhe permitem ter fé. Admite a existência de Deus, mas tal postulado, só por si, não atrai a verdadeira fé. Por fim, Dostoievski coloca Shatov num papel trágico: no momento preciso em que se começa a conhecer, desenvolvendo uma convicção religiosa, é assassinado. Quer Kirilov quer Shatov possuem convicções inabaláveis: o primeiro tem fé mas não acredita em Deus, já o segundo acredita, mas não tem fé.

3. Nunca me arrependi de ter tomado aquela, ou esta, ou outra qualquer decisão. Desde que tenha implicado uma escolha entre várias possíveis, é claro. Porque era a que estava certa, naquele momento. Era essa, e só essa, a que a minha natureza profunda não pôde suster. Ou que um impulso vigoroso projectou para a ribalta. Ou, quando o gesto amplo que se lhe seguiu, acabou por cegar a hesitação e a dúvida que se lhe opunham. Ou quando a tibieza, não poucas vezes, impôs o seu catecismo. Ora, todas elas estão certas, porque todas se resolveram naquele momento, foram produzidas para aquelas circunstâncias, utilizando um termo caro a Ortega y Gasset. Outra questão, muito próxima, mas avaliada por outra unidade de medida: será que esses momentos de liberdade conduziram a resultados certos ou errados? Ir por aí é um caminho ingrato. E porventura inútil. Se um resultado se apresenta como negativo, nada a fazer. A não ser alterar as causas, para que outros semelhantes não se produzam.

Por: António Godinho Gil

* O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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