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Nem sempre a memória corresponde à História

Da escola primária, guardo a recordação de dois, ou três, acontecimentos que marcaram esse meu tempo: a visita do ministro da educação, para quem recitámos o incontornável poema do Augusto Gil; o dia em que a minha esferográfica se recusou a escrever numa prova e, embora ainda não o soubesse, o mais importante, o 25 de Abril.

Nesse dia, começámos por estranhar o tempo de intervalo ser tão, inexplicavelmente, comprido, depois o ar circunspecto das professoras e contínuas ao encaminhar-nos para as salas de aula. Ao contrário do que era costume, nenhum de nós se atreveu a perguntar o que quer que fosse. Limitámo-nos a sentar enquanto íamos tentando adotar o mesmo ar grave da professora. Esta lá acabou por nos dizer que tinha havido um Golpe de Estado e que à tarde não haveria aulas. À saída da escola, fingimo-nos da polícia mais eficaz e temerosa que conhecíamos, éramos todas PIDE! Traçámos planos de ação, estratégias investigativas e táticas de ataque, ao fim do dia teríamos tudo resolvido e a normalidade reposta. Falhou-nos um telemóvel e a possibilidade de, em tempo real, sabermos exatamente o que se passava.

Valeu-nos a capacidade de adaptação, ao outro dia, já todas reparáramos que ser PIDE não era boa ideia e convertemo-nos, por unanimidade, ao comunismo. “Comodismo”, corrigiu-nos a professora. “Não, não! Comunismo!” Insurgiu-se a minha colega que falava a carregar nos rr’s por ter vivido, quase sempre, em França. “Os meus pais são comunistas e eu também!” Eram mesmo, todos comunistas, que só a voltei a encontrar passados uns três anos na festa do “Avante”, precisamente. Até ao final do ano letivo, ainda “militámos” no MDP-CDE, LUAR, PPD, MRPP, PS… Prendemos PIDES e saneámos um ror de gente, escrevemos manifestos políticos e convocámos manifestações, até que decidimos esquecer a “política” para pensar nas férias.

Passados 44 anos, todas nós, apesar de não nos termos voltado a “filiar” no que quer que fosse, continuamos defensoras dos valores democráticos. Se bem que, talvez por não ter voltado à festa do “Avante”, não tenha voltado a encontrar a que falava a carregar nos rr’s e por ela não possa falar. Com quem, amiúde, me tenho deparado é com “reconvertidos” ao antigo regime. Confesso que, embora até aprecie a sua capacidade de se manterem ingénuos, como nos tempos da escola primária, ao ponto de pensarem que ninguém os vê escondidos atrás dos biombos de escumilha, não consigo suportá-los. É que não consigo mesmo! Para além do cúmulo que é acharem-nos desmemoriados, ignorantes e estúpidos, ainda ousam pensar que não nos indignamos com (re)homenagens e branqueamentos óbvios do funcionarismo salazarento. Não que tenha alguma coisa contra outro tipo de funcionários, mas por esses, em particular, não tenho qualquer apreço. Quanto mais a intenção de lhes prestar homenagem!

Sem querer dar ideias, espero que não ocorra a ninguém renomear um qualquer bairro da cidade, no próximo 25 de Abril, ou noutra efeméride, só para “se fazer justiça” … a alguém!

Por: Fidélia Pissarra

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