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Não sei escrever chuva

PRÉMIO RIACHO – 2ª classificada

Não sei escrever a chuva que espanca o meu coração. É bonita. Não sei escrever chuva. O som, sempre certo, sempre forte, desprovido de – não sei escrever chuva. E chove lá fora, chove muito. É só o que ouço. A chuva é bonita porque não sei escrever

– Tenho as mãos geladas

O sangue a escorrer pela boca. O dia está tão cinzento que

– Vamos embora, tenho as mãos

Mas não quero ir, quero ficar.

– É que… não tenho frio quando estou contigo.

Podemos ir, mas não tão rápido. Chuva. Chove tanto e não sei escrever chuva.

– Foges da polícia ou quê? Abranda!

Podemos ir. E aceleras. Aceleras mais. Aceleras mais ainda.

– Olha como chove! Tem cuidado, por favor, devagar!

Não trava. Não pára. Continua. Acaba. Agora nunca mais é primavera no teu coração. Perdeste flores. O sangue a escorrer pela cara, o sangue no chão e as mãos

– Tens as mãos geladas

O nosso amor capotou pela estrada. Bateu naquela árvore, ali, onde não há nada nem ninguém. O nosso amor já não chega porque agora estás morto, morreste. Estás aí, a escorrer sangue pela boca, pela cara. E não falas.

– Acorda!

Se acordares agora eu, prometo, eu dou-te

– Tens as mãos geladas

Todo o meu

– Nunca tenho frio quando estou contigo.

Amor. Não querias uma morte digna?

– Quando morrer que seja em casa, já velho e com histórias para contar. Vão-se lembrar de mim quando morrer.

– Responde! Fala! Eu já prometi, eu prometo que

Não morras agora! Chove muito lá fora e o nosso amor não pode ficar capotado debaixo desta árvore. Não morras agora, que está a chover. Eu não sei escrever chuva. Não sei escrever o dia em que tu

– Lamento, faleceu.

Não! Não morreste! Deixa-me pensar que estás vivo, deixa-me pensar que o nosso amor continua na estrada, a caminho de casa. Por favor, não desistas!

-Eu aqueço as tuas mãos, pronto

Choro. Grito. Não! Por favor, não morras. Choro. Não morres que eu preciso

– Para sempre, prometes?

De ti. Não morras! Grito. Choro e o céu chora comigo. Grito. Tu disseste para sempre. Mentiroso! Não morras, tu prometeste! Olha a chuva lá fora!

A vida tem destas coisas, sabe, nem sempre corre como nós queremos.

Mas não preciso de frases feitas nem de consolo. Não sentem o mesmo que eu, não sabem nada. Não foram vocês que

– Morri com ele.

Deixa-me pensar que não morreste. Deixa-me matar-te com dignidade. Se quiseres mato-te, mas com dignidade e sem chuva.

Ainda que respire. Ainda que ande. Ainda que fale. Ainda que sinta. Ainda que grite. Ainda que chore.

– Morri com ele.

O sol, sempre certo, entra pela persiana e invade o quarto como quem conta um segredo. Está tudo tão calmo. Não ouço nada. Não ouço a mulher, furiosa, dentro do carro

– Pii! Cambada de nabos! Pii, pii! Nesta cidade andar com o carro é impossível, livra! Pii!

O baloiço a ranger acompanhando os risos das crianças que

– Estica as pernas e depois encolhe! Só assim é que ganhas balanço!

– Estica!

– Encolhe! Estás quase a tocar no céu!

– Weee! Olha papá que já quase que toquei naquela árvore! Olha eu a tocar na árvore, vê! Olha para mim, olha!

Brincam. Dificilmente há algo que saiba tão bem ao ouvido como a gargalhada espontânea duma criança. Dá gosto ver os dentinhos pequeninos – ou a falta deles – na boquinha. Riem-se e vão tocando no céu. A perfeição esgota-se aos seis anos.

O camião do lixo que faz uma enorme fila atrás dele

– Cambada de nabos! Pii! Nesta cidade andar com o carro é impossível, livra! Pii!

Não ouço a máquina de lavar a trabalhar – e juro que parece um avião em perfeita descolagem. Não ouço a gatinha que mia como quem chora muito. Não ouço os gritos domésticos do quotidiano dito, supostamente, normal, da criançada. Não ouço os pássaros lá fora. Não ouço esta mosca que me persegue em zumbidos. Não ouço o chiar do estendal da vizinha – têm a mesma idade. Não me ouço – ‘porra’ – a respirar. Não ouço – porra – os meus pensamentos. Não ouço nada excepto a chuva que continua, lá fora, a cair.

– Tens as mãos geladas, meu amor. Não estás morto, pois não? Não morras sem mim. Prometo que não morres sem mim.

Tum – Tum. Pi. Tum- tum. Pi. Tum- tum. Pi.

– O coração dela bate mas entrou num estado de coma profundo.

Na passada quarta feira, duas pessoas tiveram um acidente de viação na auto-estrada. Uma delas morreu quase instantaneamente, supõe-se. A segunda teve alta um dia depois, quase sem ferimentos. Inexplicavelmente entrou em coma, já em casa. Foi encontrada no quarto, deitada na cama. Os familiares tiveram de chamar os bombeiros para que arrombassem a porta. Encontra-se agora no hospital.

– Achas que algum dia vai acordar?

Ainda senti o frio do alcatrão molhado nos pés descalços, ainda te vi nesse descanso eterno. Não consegui aquecer-te. Desculpa, não consegui aquecer-te.

– Bom dia, mãe. Já estamos na primavera?

Inês Tavares (11º F)

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