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Não há desastres naturais (1)

Theatrum mundi

É impossível ignorar as imagens de calamidade que, naqueles dias de Janeiro, chegaram do Haiti. Enxames de jornalistas e repórteres de imagem invadiram o país e apressaram-se a garantir o cumprimento da sua tarefa maior que é, asseveram, informar – certamente – mas também mostrar a dor e provocar a compaixão por quem está longe e vulnerável. Informar sobre a calamidade provocada por um desastre ‘natural’, in loco, estilhaça as mais arreigadas convicções sobre a objectividade e neutralidade do jornalista (informar do sofrimento alheio é dar conta do inevitável subjectivo de que é feito o mundo humano). Como escreveu Susan Sontag no já clássico Regarding the Pain of Others, ser um espectador das calamidades ocorridas no estrangeiro é a experiência moderna por excelência, tornada possível pela oferta cumulativa do trabalho devido a “esses turistas especializados e profissionais chamados jornalistas”. Seja como for, informar do sofrimento alheio não pode deixar de provocar dúvidas quanto ao carácter moral do olhar compassivo. Com os sobreviventes aprisionados no meio dos destroços, ou a deambular à procura de ajuda, e os mortos apinhados em cada recanto, é legítimo indagar se o direito de informar e ser informado – ou a curiosidade mórbida, dirão alguns – não se transforma em artefacto repugnante, amoral ou, pelo menos, supérfluo. Bem sei que o mecanismo da solidariedade global desencadeado nos últimos dias não seria possível sem essas imagens e crónicas do sofrimento alheio que infundem no espectador mais incauto o sentimento de vulnerabilidade face a um desastre ‘natural’, impossível de prever, inevitável por natureza, implacável na sua destruição. Mesmo assim, é imperativo perscrutar a moral do olhar porque nada deve ser nunca dado como garantido, a bondade de nenhuma perspectiva do mundo, por exemplo, nem a carteira profissional abriga ninguém dos mais profundos dilemas morais da humanidade, aqueles que instam a decidir o que fazer, como agir, perante um caso concreto. A moral do olhar é inescapável e não há lugares seguros face a ela. Um qualquer jornalista compassivo a relatar o sofrimento provocado por um desastre ‘natural,’ no Haiti, pode bem transformar-se em vítima dela. Foi o que se passou a propósito da polémica dos paquetes de luxo que não deixaram de atracar no país, após o desastre. Num primeiro momento, os jornalistas chamaram-lhe ‘turismo de catástrofe’, sem dar conta de que, em si mesma, a expressão pouco ou nada se distingue do que poderíamos chamar ‘jornalismo de catástrofe’. Porque deveríamos atribuir ao olhar do turista aquela curiosidade mórbida, reprovável, de que ilibamos, quase automaticamente, o jornalista? Porque deveríamos condenar a sua vontade de pôr o pé em terra firme e testemunhar, em primeira mão, o sofrimento mediado e representado pelos artifícios do jornalista? Mas será a viagem de recreio, justaposta ao sofrimento e à pobreza extrema dos haitianos, a única coisa que choca a moral do olhar compassivo? Ou até aquela que mais a choca? Num segundo momento, este ‘turismo’ já foi visto com outros olhos pelos jornalistas, assim que carregamentos de água e comida, destinados à população haitiana, começaram a sair dos paquetes de luxo. De forma reveladora, esta imagem passou então a confundir-se com as da ajuda maciça prestada pelo conjunto das organizações e estados, e o seu carácter polémico desvaneceu-se. Afinal, e se aos turistas apenas acontecera passarem por ali, no preciso momento do desastre ‘natural’, porque não conceder-lhes a legitimidade de se juntarem às hordas de cidadãos, jornalistas e estadistas compassivos, com a sua parafernália de salvamento e reconstrução? A moral do olhar compassivo diz mais sobre quem olha do que sobre quem é olhado e, no caso do Haiti, a compaixão promete transformar-se na indústria de salvação de um país inteiro, exorcizando quem sabe que culpas não admitidas por mais um desastre ‘natural’.

As imagens da insegurança humana extrema que chegaram do Haiti – das pessoas aprisionadas sob os escombros, do colapso da assistência médica e da assistência alimentar, da quebra da ordem pelo desaparecimento institucional do estado, dos campos improvisados onde falta de tudo, dos movimentos de deslocados e até do rapto de crianças – levaram-me de volta ao artigo que Timothy Garton Ash publicou, no diário britânico The Guardian, a 8 de Setembro de 2005, a propósito do desastre ‘natural’ chamado Katrina que afectou Nova Orleães. No artigo que intitulou de “It always lies below”, Garton Ash reflecte sobre a dimensão política do desastre ‘natural’, sublinhando que o furacão provocou a anarquia e que a des-civilização não se encontra tão distante das sociedades ocidentais, avançadas e civilizadas, como queremos pensar. Para os cidadãos auto-complacentes e auto-congratulatórios do Primeiro Mundo, o desastre do Katrina devia ser uma chamada de atenção para as vulnerabilidades sociais do mundo desigual em que vivemos (e em que as desigualdades mais gritantes atingem o próprio coração das sociedades afluentes), uma chamada de atenção para o muito que não é natural em cada calamidade produzida por um desastre natural. Estas últimas ideias não constam no artigo de Garton Ash; o que consta é outra advertência, a de que não pensemos que a quebra de ordem verificada em Nova Orleães seria inimaginável na “simpática e civilizada Europa”. Aconteceu aqui mesmo, há 65 anos, por todo o continente. Basta ler as memórias dos sobreviventes do lager nazi ou do gulag soviético; basta ler a descrição que Norman Lewis fez de Nápoles em 1944 ou os múltiplos relatos da vida em Berlim em 1945. E voltou a acontecer na Bósnia, nos anos 1990, sem que a força maior tenha sido a de um desastre natural. No seu artigo, Garton Ash lembra a todos que os desastres ‘naturais’ na Europa foram provocados pelo homem e joga com a atribuição de qualidade ou acção humana aos desastres naturais e qualidade ou acção natural aos desastres provocados de forma humana. A hipálage utilizada resulta assim crucial, no meu entender, e pode servir como instrumento crítico para averiguar o que se esconde por detrás – ou por baixo, se seguirmos a lógica do artigo de Garton Ash – de cada desastre ‘natural’. Se os furacões da história europeia, que provocaram a anarquia e a des-civilização, tiveram origem humana, será assim tão seguro que os desastres provocados pelo furacão Katrina e o recente terramoto no Haiti são absolutamente naturais e desligados da acção humana? Afinal, quão natural é o desastre no Haiti? Quão natural é a calamidade e quão forjada o é pela acção humana que produz vulnerabilidades sociais e condena populações inteiras, no Haiti mas também em Nova Orleães, à acção dos elementos?

Por: Marcos Farias Ferreira

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