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Na Guarda das memórias da Rádio

Anotações

As recentes declarações da Ministra da Saúde, a propósito da segunda fase da requalificação do Parque da Saúde, não foram muito clarificadoras, deixando transparecer algumas incertezas. O contexto económico e financeiro acentua algum cepticismo relativamente à recuperação anunciada…

Daí que, e na sequência do nosso último apontamento, sejam de sublinhar os trabalhos de recuperação e conservação num dos edifícios outrora pertencentes à histórica estância sanatorial; ou seja, nas instalações onde, desde o início da década de 50 do passado século, funcionam os estúdios da Rádio Altitude, cuja história se cruza, indelevelmente, com a do Sanatório Sousa Martins.

Esta unidade de saúde, vocacionada para o tratamento da tuberculose, foi das primeiros a abrir as portas, em Portugal (1907). Os doentes com maiores possibilidades económicas impulsionaram a criação da CRS (1937), no âmbito da qual surgiu uma biblioteca (dotada com mais de 3000 volumes, quase todos perdidos devido à incúria de muitos…) e um salão para a projecção de cinema.

A partir de 1944, e na sequência do elevado aumento dos internados no Sanatório – dada a abertura da instituição aos doentes mais pobres, foram construídas e montadas oficinas de serralharia, mecânica, marcenaria, relojoaria e electrotecnia; surgiram, posteriormente, duas escolas de instrução primária e um posto de telescola.

A Caixa Recreativa deu lugar ao Centro Educacional e Recuperador dos Internados no Sanatório Sousa Martins (CERISSM), cujo objectivo era “auxiliar os doentes internados, em especial no que respeita à sua promoção social e ocupação dos tempos livres”. No artigo relativo aos “fins propostos” especificava-se que o Centro podia: “manter uma Estação de Radiodifusão sonora devidamente autorizada; publicar um Jornal que sirva os interesses dos doentes e difunda as suas actividades”.

Dentro deste quadro, a rádio conquistou, progressivamente, maior dinamismo e afirmação, ultrapassando as fronteiras do Sanatório, envolvendo e sensibilizando a cidade, projectando-se na região serrana, assumindo-se como um dos principais pilares dessa instituição de solidariedade.

É interessante verificar que no seio dos sanatórios portugueses surgiram interessantes experiências radiofónicas, das quais perdurou a Rádio Altitude. Antes mesmo de as ondas hertzianas se elevarem do Sanatório Sousa Martins, a actividade radiofónica entusiasmava já alguns internados no Sanatório do Caramulo, onde surgiu em finais da década de 30, a Rádio Pólo Norte. No Sanatório das Penhas da Saúde (Covilhã) registou-se a criação da Rádio Pinóquio, precocemente desaparecida; no Porto surgiu a Emissora da Assistência aos Tuberculosos do Norte de Portugal e noutros locais, como é o caso de Torres Vedras, há também conhecimento de actividade radiofónica.

Enquanto esta se estava a iniciar, na Guarda, começou a ser editado o Boletim (como se definia nos primeiros tempos) Bola de Neve; a primeira publicação data 1 de Fevereiro de 1948, tendo como primeiro director o Engº Álvaro Martins da Silva.

O Bola de Neve contou com eminentes colaboradores, nomeadamente Damião Peres, Amorim Girão, Nuno de Montemor, Miguel Torga, J. Romão Duarte, Otília de Bastos Couto, Joaquim Verissímo Serrão, General João de Almeida e Ladislau Patrício, entre outros. Este jornal é uma importante fonte para o conhecimento dos primórdios da Rádio Altitude.

Na edição de 1 de Abril de 1948, noticiava que a Caixa Recreativa do Sanatório Sousa Martins tinha adquirido “um aparelho emissor.” Num relatório da Caixa Recreativa, publicado no mesmo número, era feita referência à aprovação, pela Direcção daquela associação, do “Regulamento da Rádio Altitude”.

Este regulamento (que a actual direcção evocou, e bem, no dia da efeméride) é datado de 21 de Outubro de 1947, sendo assinado pelo Dr. Ladislau Patrício, Director do Sanatório, e pelos membros da Direcção da Caixa, entre eles Vilela da Mota e Guilherme Teixeira Ribeiro. É como que uma certidão de nascimento da estação emissora guardense, à época extremamente modesta, como se pode verificar quando nos confrontamos, por exemplo, com o número de registos da sua discoteca (209 no total; alguns discos foram oferta da Emissora Nacional de Radiodifusão, Rádio Clube Português e Rádio Porto).

A 29 de Julho de 1948 iniciaram-se oficialmente, com alguma pompa e circunstância, as emissões da Rádio Altitude. “Eram 22 horas do dia 29 de Julho. Ia começar a festa da Rádio Altitude, que diferentemente do que estava marcado no programa, começava pela sessão inaugural – que teve lugar no estúdio do Posto Emissor, de forma que os próprios espectadores – que enchiam completamente o Teatro da Caixa Recreativa – ouvissem, com carácter radiofónico, as palavras que iam ser proferidas. Havia vários aparelhos receptores de telefonia na sala e era fácil, pois escutar e tomar contacto com a cerimónia. A sessão podia ter sido realizada no Teatro, mas assim estamos certos de que aquilo a que será lícito chamar consciência radiofónica vinha a ficar mais esclarecida e iluminada.” Noticiou o Bola de Neve. A Rádio Altitude apresentava-se como “Posto Emissor CS2XT”, emitindo no comprimento de onda dos 212,5 m e na frequência de 1495 Kc/s. As emissões desdobravam-se, na altura, em dois períodos.

No panorama nacional, e mesmo em termos europeus, a Rádio Altitude surge, pelo seu historial, como um caso ímpar, tendo sido, simultaneamente, a única estação emissora de radiodifusão sonora, de âmbito regional, que sobreviveu às convulsões e reformas registadas, no sector da comunicação social, em Portugal, após 25 de Abril de 1974.

“Estudar a rádio envolve uma tentação quase irresistível de ceder ao apelo da sua magia. A comunicação radiofónica possui vários componentes que remetem a um universo fora do alcance da racionalidade”, como escreveu Eduardo Meditsch.

Lembrar a recente efeméride, salvaguardar e recordar este património, acompanhar o trabalho e os projectos (do presente) ali pensados e realizados, é dever de todos quantos sentem e vivem a Guarda da rádio.

Por: Hélder Sequeira

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