Arquivo

Na árvore à procura das raízes

Tresler

Quando se começa uma árvore genealógica e não se tem grandes informações sobre o passado, as surpresas podem vir ao dobrar da esquina. E é engraçado o ramificar da árvore, os nomes dos ascendentes a aparecer, os apelidos familiares com que não contávamos, habituados que estamos a um ou dois sobrenomes. Mas o que a experiência de pesquisa nos Arquivos distritais comprova sobretudo é que, afinal, se procurávamos originalidade, distinção e grandes nomes, aparecem-nos sobretudo fenómenos entre o impreciso e o vulgar.

Nos Arquivos só podemos pesquisar de 1911 para trás, sendo esta data republicana a da passagem dos arquivos paroquiais aos registos civis. Leva-se meia dúzia de referências e depois é colar as peças do puzzle através dos registos de batismo, casamento e óbito. A primeira impressão que se tem ao folhear estes livros é a do enorme poder da Igreja, que assegurava na altura o auxílio espiritual mas também a memória organizada da sucessão de gerações. Ao vermos uma média de 30 nascimentos, 10 casamentos e 20 óbitos por ano numa aldeia como a Castanheira (concelho da Guarda), imaginamos a carga burocrática de registos que sobrecarregava e dava poder à hierarquia eclesiástica, isto é, ao pároco da aldeia, numa média de um registo em duplicado a cada cinco dias, para além das eventuais licenças a pedir.

Nos batismos damos conta a cada passo do enorme rácio de crianças por família, o que, no caso da minha aldeia, equivalia a muitas famílias com mais de 8 filhos. Consultando logo a seguir os óbitos dos mesmos anos, verificamos que grande parte dessas crianças morriam antes dos 3 anos de vida, sendo o “cantinho dos bebés” no cemitério local de área bastante significativa. Fiz as contas aos falecidos na Castanheira entre 1901 e 1910 (10 anos) e a média de falecidos por ano foi de 24, sendo 13 deles crianças (portanto mais de metade), a maior parte de tenra idade. Era agosto, o “mês dos anjinhos”, a época mais dizimadora. Outras vezes eram os batizados que eram feitos por qualquer pessoa em casa no dia do nascimento por causa do perigo de vida do bebé. Passa-nos um frisson pela pele quando verificamos que há várias famílias a perder 7 dos 10 filhos que produziram, algumas mesmo a perder dois filhos no mesmo ano. Que tempos!

Um fenómeno surpreendente é também o do número elevadíssimo de filhos naturais, ou seja, de pai incógnito. É aliás rara a família que numa ou noutra geração escapa a essa realidade, hoje com a marca da reprovação mas sem a da rejeição social. Eram tempos de promiscuidade, de condições de habitabilidade péssimas, de imensas pessoas a viver em espaços exíguos. A vontade de independência muitas vezes era preponderante e as experiências proibidas eram um desafio mas não eram muitos os casos de mãe solteira que acabavam em casamento, de tal modo o estigma ficava. Talvez ainda mais chocante para nós seja o facto de os filhos “naturais” serem frequentemente fruto de relações com familiares, como hoje se verifica ser o caso das relações de pedofilia. Em alguns casos aparecem situações de pais incógnitos em três gerações seguidas, parecendo isto quase do domínio do patológico. E alguém aproveita para me referir os casos das criadas de servir que, ao saírem do seu meio, às vezes para a incógnita cidade, se sujeitavam a quase tudo. Havia ainda os casos dos “expostos”, ou recolhidos na “roda”, aí deixados por mães sem meios ou capacidade de criarem os filhos. Depois os expostos eram encaminhados para amas pagas pela Câmara Municipal. A literatura é rica nesses casos e os arquivos também.

Nos casamentos as autorizações de casamento com familiares abaixo do 4º grau de consanguinidade são também uma constante, habitualmente com cedência da Igreja. As razões muitas vezes são de família para manter juntas terras dos ascendentes mas os argumentos às vezes são de monta: uma paroquiana de uma pequena anexa da Castanheira pede para poder casar com um primo por a localidade ser pequena e não poder arranjar “parceiro seu igual” nas redondezas. O mesmo acontecia, diz-me uma vizinha de sala, quando se tratava de antigas comunidades judaicas a viver em certas aldeias ainda sob o signo de alguma velada repressão e a procurar parceiros judeus dentro dessas comunidades.

Quando falamos de imprecisão, falamos dos nomes de família, de que as mulheres raramente gozavam. Ficavam quase sempre com apenas dois nomes próprios (Roza Margarida ou Umbellina Maria por exemplo). Outras vezes encontra-se a mesma pessoa designada por três apelidos diferentes de registo para registo: Margarida Braz, Margarida Gomes, Margarida Roza. Ainda quanto a nomes, dominavam nos homens os Joaquins, Josés, Antónios e Manoéis, nas mulheres as Marias (simplesmente) com grande preponderância e depois as Rozas, as Annas, as Antónias e as Jenuvevas. Era também rara a família que não dava a um dos filhos o nome do pai ou da mãe.

Procurar os nossos antepassados cria vício, dizem-me aqui ao lado na Sala do Arquivo e ainda não cheguei aos registos de inícios do séc. XIX. A letra e a nitidez começam depois a dificultar a tarefa mas parece que o vício aumenta. Já agora para começar, antes de ir ao Arquivo, podem iniciar árvores na Net em www.myheritage.com.pt

Por: Joaquim Igreja

Sobre o autor

Leave a Reply