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Na alcova de Ruiz

o que há para ver

Todos ficam espantados, não-ruizianos incluídos, com o ritmo de Raoul Ruiz (que agora assina Raúl). Estilista assumido (não é possível ficar-lhe indiferente), homem obcecado por forças «do outro mundo», o cineasta chileno encontrou um sistema de trabalho regular graças à fidelidade de alguns «compagnons de route», como Paulo Branco. Sobre “Klimt”, co-produção europeia falada em inglês, disse Ruiz que «não se trata de um ‘biopic’, antes de uma fantasia, ou de uma fantasmagoria, de um fresco de personagens reais e imaginárias que giram em torno do mesmo ponto: Gustav Klimt». Curiosamente, o filme chega às nossas salas poucos dias depois de “Adéle Bloch-Bauer 1”, retrato pintado por Klimt e saqueado pelos nazis nos anos 30, ter sido comprado pelo valor recorde de 135 milhões de dólares.

“Klimt” move-se ao ritmo de uma valsa. Descasca-se como uma cebola, em sucessivos jogos de «flash-back» que nos tiram por mais de uma vez a Terra dos pés. Exemplo: logo no início, naquele hospital onde estropiados e sifilíticos se misturam (estamos em 1918, no fim da I Guerra Mundial), visão do Inferno, vemos Gustav Klimt (John Malkovich em papel superior), deitado na cama, à beira do fim. Quem o vela é uma estranha figura que só mais tarde saberemos tratar-se de outro pintor maior, Egon Schiele (Nikolai Kinski, filho de Klaus Kinski e irmão de Nastassja), seu admirador distante e companheiro de tertúlias. Daí recuamos a outras aventuras. Por exemplo, a de Paris de 1900 que homenageia Klimt na Exposição Universal, enquanto, em Viena, se humilha e critica o pintor por obra provocadora e vida libertina.

Dirão os apreciadores de Ruiz que não há nada de novo aqui, na valsa, na cebola. É verdade. Só que “Klimt”, tal como o delírio proustiano que foi “O Tempo Reencontrado” (1999), ainda o melhor Ruiz dos últimos anos, é alimentado pela vertigem da morte de um homem e de um tempo (Klimt e a sua condenada Viena), integrando imediatamente as personagens nas ilusões, ao contrário do que sucedeu em ficções desastrosas, como “As Almas Fortes” ou “Aquele Dia”. Se Klimt/Malkovich é a parte solar do filme, Schiele/Kinski é a sua parte lunar, sombria. Com Klimt, acaba o século XIX; com Schiele, começa o século XX. Esta fractura perpassa todo o filme e mantém a expectativa. Como disse Ruiz, «espero que encontrem a atmosfera do fim de uma época e do nascimento de uma não-época».

Perde-se, contudo, demasiado tempo na alcova do pintor que Ruiz faz sua, em erotismos enevoados e «fin-de-siècle», ilustrações-postal da decadência. “Klimt” insiste no fado do «autor incompreendido» e percebe-se que Ruiz, através do pintor, fala afinal de si próprio. Neste ponto, a «fantasmagoria» mudou de campo, passou da personagem para o realizador, em reivindicações sussuradas ao ouvido. Pouco elegantes, aliás.

Francisco Ferreira

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