Em Ne change rien (2009), a música faz a noite em vez de simplesmente se alastrar por ela. Em cada momento, Jeanne Balibar e os músicos que com ela trabalham surgem num resguardo nocturno, onde os segredos se aprofundam. Ela canta, eles tocam, e a noite cai como uma cortina que abre. A luz mantém-se incerta ou distante. O mais intenso é a chama humana que habita um abrigo fecundo. Pedro Costa afasta-se neste filme da comunidade do Bairro das Fontainhas com a qual desenvolveu três obras: Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000), e Juventude em Marcha (2006). Tal como nesses filmes, o olhar dele é interior, o que faz com que todos estes projectos tenham uma clara dimensão comunitária.
No princípio, a cantora e a banda actuam sem que se vejam os espectadores. A atenção centra-se no palco. A imagem é quase negra, sustida e sem mudança, e o pouco que se vê intensifica o muito que se sente. A afinidade simples entre os músicos sobressai no concerto de sons. São filmados de uma baixa altura, num ligeiro contrapicado, que desvenda um firmamento de luzes por cima deles. A harmonia entre eles tem um tom cósmico, incomensurável. O filme passa depois deste plano geral para os grandes planos, separando cada membro da banda e mostrando como essa relação se constrói e ganha espessura nos ensaios e gravações. O foco é em Balibar, voz que paira sobre as notas tocadas como uma assombração humana. Ela procura uma expressão vocal subtil e penetrante, não só na música que faz com o grupo, mas também numa ópera de Jacques Offenbach.
Este é um cinema da intimidade, isto é, da familiaridade e do entendimento entre as pessoas filmadas, mas igualmente entre quem é filmado e quem filma. O que é privado não é escancarado — basta recordar a cena em, depois de tocarem, os músicos se reúnem em convívio e a visão dessa reunião é obstruída por uma tela branca. Entre a exposição e a ocultação, a revelação e a transfiguração, há uma atenção criativa que se alimenta do pulso dos seres procurando ignorar o evidente e encontrar o ardente. Não podemos falar de distância justa, e muito menos de distância certa, mas de uma distância que molda as imagens e os sons como matérias plásticas com a liberdade de um laço que une sem prender. Os enquadramentos condensam a energia dos acontecimentos sem a aprisionar.
A noite permanece, mundo dos olhos furtivos dos gatos e dos tempos vagarosos da amizade, mas a cena final é a mais luzidia. Num camarim, Balibar ocupa o centro, encostada a uma parede branca, em segundo plano. Rodolphe Burger, à direita, toca uma guitarra, quase de perfil. Hervé Loos, à esquerda, improvisa a percussão com uma garrafa de plástico. Atrás de Hervé, um espelho devolve outra imagem de Balibar. O cruzamento de forças visuais manifesta a capacidade de improviso, de arriscar, sem desconforto nem receio.
Sérgio Dias Branco*
* Coordenador de Estudos Fílmicos e da Imagem (Mestrado em Estudos Artísticos) na Universidade de Coimbra
**O autor escreve de acordo com a antiga ortografia