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Museu do quê?

Editorial

Aproveitando a sessão solene do dia da cidade e das comemorações dos 815 anos da outorga do foral à Guarda, Álvaro Amaro revelou o presente desejado para este aniversário: a criação do “Museu da Cidade”, que ocupe todo o quarteirão onde outrora funcionou o Seminário da diocese egitaniense e hoje alberga o Museu Regional da Guarda, o Centro Cultural da Guarda, o Paço da Cultura e o espaço devoluto da diocese – antiga capela requalificada para museu de arte sacra, mas que continua vazia oito anos depois das obras concluídas. E que, assim, nos possa «transportar na era moderna para aquilo que é o orgulho dos 815 anos de História». Mais, para o autarca, e para além da requalificação de todo aquele património, o Estado tem de entregar o Museu à Câmara (com o respetivo envelope financeiro). Logo ali, sem surpresa, o secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, assumiu o desafio e prometeu empenhar-se na da criação de um «quarteirão para a cultura e as artes».

A ideia de fazer um «grande» museu no centro da Guarda pode ser uma extraordinária alavanca para o desenvolvimento do centro da urbe e para a renovação urbana, social e cultural da cidade. Aliás, aquele quarteirão é, per si, um conjunto monumental que merece não apenas ser preservado (e tem sido) como pode e deve ser redefinido em termos de utilização (usando melhor as diferentes alas, dando vida a todo o complexo e aproveitando as zonas exteriores, nomeadamente a área Este, hoje subaproveitada e inapropriadamente subvertida à função de estacionamento da direção do Museu). Todo o conjunto é de grande interesse histórico, patrimonial e arquitetónico e a sua valorização a priori, deve merecer sempre o aplauso.

Mas a sugestão apresentada tem algumas nuances que têm de ser consideradas e que não terão merecido grande reflexão, nem à Câmara nem ao secretário de Estado – o que é estranho, pois Álvaro Amaro fundamentou a ideia e Barreto Xavier, ao assumi-la, também já a conhecia e sobre ela deveria ter feito a melhor ponderação.

O Museu da Guarda é uma instituição regional e a sua putativa transformação em Museu Municipal é, desde logo, uma inusitada desclassificação (que contraria de resto a ideia defendida por Amaro na campanha eleitoral em relação ao TMG, que deveria deixar de ser Municipal para passar a ser Nacional, com tudo o que isso implicaria, nomeadamente em termos de financiamento e prestigio – promessa que parece já esquecida). Depois, as características do espólio: o Museu Regional da Guarda representa a região e guarda artefactos, documentos e obras que caracterizam a região, são a mostra historiográfica, arqueológica e etnográfica do distrito da Guarda e permite apresentar a todos os interessados o contacto com a antropologia social e cultural da região e não apenas do concelho. E tem, como poucos, um acervo notável de obras de pintores portugueses de renome e prestígio.

O “conjunto” alberga também o Centro Cultural da Guarda, instituição que tem grande atividade cultural, nomeadamente com centenas de jovens habituados a frequentar os espaços e escolas artísticas e que não verão com bons olhos a possibilidade de serem transferidos para outro local.

E, sem querer ser minucioso em relação a outros pequenos detalhes (que os há), deixo uma última nota para a reflexão dos leitores: a valência da ideia e a sua contextualização. Primeiro, fará sentido criar um «grande» museu “apenas” dedicado à história da Guarda, aos seus 815 anos? Não foi com o propósito de “contar” a história da Guarda e mostrar o concelho «de portas abertas», de forma «moderna», interativa, com uma linguagem juvenil, recorrendo ao multimédia e de forma «viva» e dinâmica que se instalou o centro de interpretação e espaço “para-museu” na Torre de Menagem (com filme em 3D!!)? Segundo, não faria mais sentido e não seria mais ambicioso e atual projetar um centro de arte contemporânea em vez de investir mais na museologia dos pormenores historiográficos e na narração histórica e factual? Não faria mais sentido investir no experimentalismo e nas artes performativas, na escultura moderna e na pintura de vanguarda, do que continuar com os olhos postos no passado e que não conquista novos públicos? Não fará mais sentido apostar em novos caminhos, novas sensibilidades e novas formas do que continuar amarrado à memória e ao relato dos tempos que já lá vão? E não seria também mais interessante meditar numa nova localização para um equipamento desta natureza? (neste espaço, mais de uma vez, defendi que faria sentido investir na Guarda num centro ou museu de arte contemporânea, fi-lo ao refletir sobre a impressionante metamorfose de Bilbao com a instalação do museu de arte contemporânea Guggenheim – realidade e transformação de que sou testemunha, pois residi naquela cidade basca durante mais de cinco anos -; fi-lo a propósito do “murro no estômago” que António Piné deu aos guardenses ao “oferecer” a sua excêntrica e extraordinária coleção de pintura contemporânea à Ordem dos Farmacêuticos em vez de a ceder à cidade onde viveu e ganhou dinheiro para adquirir tantas obras-primas, que podiam muito bem ser a base de um museu de arte contemporânea de grande qualidade na Guarda; fi-lo, posteriormente, quando Américo Rodrigues defendeu publicamente um projeto de instalação de centro de arte contemporânea como alavanca cultural e estratégica para a cidade. Passados todos estes anos, e mesmo quando nos dizem que é preciso criar um museu que nos conte a história da Guarda de forma «moderna», como se o passado pudesse ser modernizado, continuamos nos antípodas da modernidade e a olhar para o passado.

Luis Baptista-Martins

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